Apesar de estar proibido pelo autor de falar de política, não estou proibido de pensar sobre ela. "Livre pensar é só pensar", como escrevia o humorista brasileiro Millôr Fernandes. E eu, apesar de narrador, penso muito, não sobre política, mas sobre geopolítica. Dá um ar mais sofisticado. A política tornou-se uma coisa paroquial; a geopolítica traz com ela o véu diáfano das coisas cosmopolitas. Os meus pensamentos, apesar de livres, são negros, cada vez mais negros. Houve um momento em que este narrador pensou viver no melhor mundo que estava disponível para viver, um mundo que tem o nome de uma princesa fenícia e que Zeus, disfarçado de touro, decidiu raptar. Hoje, esse mundo, com o doce nome da princesa, ainda é o melhor dos mundos existentes, mas está a ser vendido, literalmente e sem pudor, perante a apatia dos seus sonâmbulos habitantes — não ao desejo taurino de Zeus, mas à pata do urso, à máscara de Hades, que se prepara para destruir o jardim. Talvez tenha dormido mal, talvez as notícias me estejam a perturbar a digestão, mas não consigo deixar de pensar nos meus netos e nos netos daqueles que vivem no melhor dos mundos — e na possibilidade de eles não perdoarem aos avós e aos pais o mundo que pode vir a ser o deles. O melhor será tomar um comprimido para dormir ou abdicar do livre pensar, apesar de este ser só pensar. Está a chegar o crepúsculo. Vou fechar as persianas. Talvez a noite não entre.
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