Ontem fui à Gulbenkian ouvir a Elena Zhidkova cantar Mahler. Tenho sempre uma sensação ambígua perante grande parte do público que ali vai. Faz-me sentir que a minha idade ainda não é um caso desesperado, mas logo me projecto naquelas pessoas e vejo-as como uma imagem minha vinda do futuro, caso lá chegue. Tenho vontade de as cumprimentar como se me cumprimentasse a mim, e, imagino, ali vou eu, a arrastar os pés, suportado por uma bengala ou empertigado como uma múmia para disfarçar os centímetros que os anos me roubaram. Para piorar as coisas dizem-me que muitas daquelas mulheres fazem lembrar as professoras do Maria Amália de há cinquenta anos. Sorrio e penso na Zhidkova que, com os seus belos olhos azuis e ar impertinente, não se parece nada com uma professora de há cinquenta anos. A Zhidkova e o Mahler foram ontem e hoje, observo, não há lied que afugente o mau tempo. As pessoas passam de guarda-chuva na mão, marcham receosas, como um exército em debandada. Olho para o relógio e ainda me faltam duas horas para chegar a casa. Quando chegar, prometo a mim mesmo, hei-de ouvir uns lieder do Schubert. Talvez evite que uma chuva de disparates saia de mim.
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