quarta-feira, 13 de março de 2019

Encantamento

Estava a arrumar uns livros antigos. Entre eles havia dois romances, comprados em segunda mão, da George Eliot, Rómula e Encantamento nas Trevas (Silas Marner), ambos da Livraria Romano Torres, edições dos anos cinquenta do século passado. Quando compro livros usados procuro sempre marcas de anteriores proprietários, como se esses sinais os dotassem de uma sobrevida e os tornassem mais dignos de serem lidos. Em Rómula havia uma dedicatória datada de 4 de Agosto de 1954: Recordando mais um dia 4, o “nosso dia”, ofereço-te esta pequena lembrança, a tua, e seguia-se a assinatura. E esta marca do passado, de um passado no qual eu nem sequer existia, alegrou-me a tarde e devolveu-me um sentido de realidade que o dia se encarregara de me levar. Essa realidade, porém, resvalou de imediato para uma longínqua memória. Os primeiros livros que vi da Romano Torres, ainda criança, eram vendidos numa mercearia, onde, ao lado das montras das fazendas e das utilidades domésticas, havia uma com livros para crianças e adultos. Por vezes, o passado tem destas coisas. Habita nele uma perfeição que o tempo dissolveu, como por certo terá dissolvido o laço mais-que-perfeito entre quem ofereceu e quem recebeu o livro da Eliot. A noite aproxima-se exposta no escaparate de uma montra de cristal, trazendo no seu bolso um encantamento nas trevas.

2 comentários:

  1. Que memórias me trouxe: os livros da Romano Torres. Lembro-me bem de ler, entre outros, o Quo Vadis? e o Ivanhoe.
    Mas o que me encanta mesmo é ler estes seus apontamentos diários, habitados de uma perfeição que espero o tempo nunca dissolva.
    É um prazer lê-lo.
    Obrigada.

    Maria

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