segunda-feira, 1 de abril de 2019

Troveja

Um dia para esquecer, digo entre dentes e rio. Qual dos meus dias não foi para esquecer? Talvez meia dúzia, uma dúzia será já um excesso. Todos os outros saíram pela porta por onde entraram sem que eu me lembre deles. Sento-me à secretária e, para me lavar das necessidades da vida, pego num livro de Nuno Júdice, onde leio “Nenhum pássaro regressou do sul / aos seus ninhos vazios”. Esta poética do abandono, porém, não me comove e fecho o livro. Troveja, mas parece coisa longínqua. Ah se chovesse torrencialmente, que bom seria, murmuro. Como tudo ficaria mais limpo: as ruas, as casas, os carros, a vida e as almas, tão suadas que elas estão, tão fora do jejum que a Quaresma obriga, tão exaustas de serem almas e de arrastarem atrás de si a vileza do corpo. Oiço outra vez o ribombar de trovões. Talvez a trovoada se esteja a aproximar. Há nuvens negras, mas o horizonte é de um azul pálido que se suspende sobre as serranias. O dia despede-se ao toque do tambor e eu entro na noite pelo desfiladeiro maculado do silêncio.

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