Chegou o mês que, por tradição, traz os calores despropositados. Ainda não serão dias de quarenta graus, mas a anunciação do inferno já se fará sentir. Sem se dar por isso, um terço do ano está cumprido. Nestes quatro meses, vimos começar uma guerra aqui ao lado, perigar a segurança a que nos tínhamos habituado e ainda pôr de lado, por cansaço e habituação, a pandemia que nos tolhe a vida há dois anos. São tempos para especulações escatológicas. Estas têm sempre um mercado razoável e nunca falta uns tresloucados prontos para alimentar os temores e as meditações negras. Em tempos, esteve na moda caracterizar o homem como um animal racional. Pertenceria ao género animal, era um ser com anima (alma, princípio de vida), e a racionalidade era a diferença específica que o separava dos animais não humanos, como se tornou uso dizer. A questão, porém, é que o casamento entre a animalidade e a racionalidade não parece ser coisa particularmente benéfica. A razão deu aos animais humanos um poder destrutivo que não teriam, caso fossem dela privados. Não apenas seriam incomensuravelmente menos destrutivos, mas também muito mais felizes. Regulados pelo instinto, agiriam de acordo com os ditames da natureza ou de Deus – conforme a crença do leitor – e não teriam qualquer meta a alcançar, qualquer ideia que os tornasse desavindos consigo mesmos. Pensou-se que a razão seria uma estratégia para aplacar a nossa animalidade. O que se vê, porém, desmente essa pretensão. A razão é o modo como um animal frágil se torna um terrível predador. Agora que já me conferi o direito de tratar da bílis em público, volto para a música de Orlando di Lassus, os Salmos Penitenciais de David, na interpretação do The Hilliard Ensemble. Tendo esta música sido escrita e interpretada por seres humanos, desconfio que, apesar de tudo, o animal racional que há em nós ainda não estragou tudo. É uma suspeita. O pior será o calor que nos espera, caso não nos espere coisa pior.
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