Apesar de estar em contínua mudança, o mundo muda menos do que se pensa. Oiço gritos na praceta. Um bando de adolescentes dá pontapés numa bola. Estão entusiasmadíssimos a jogar na rua. Fiquei a olhar para eles e vi-me a mim a fazer exactamente o mesmo, há muitas décadas. Espantam-me apenas os decibéis. Também eu e os meus companheiros de então gritávamos assim? Brincar na rua era, naqueles dias e numa vila provinciana, um exercício democraticamente distribuído. Todos brincavam na rua, a não ser um ou outro infeliz subjugado por uma tirania maternal. Estes que jogam à bola aqui em baixo, porém, são uma elite de felizardos. O que não muda é o entusiasmo dos rapazes atrás de uma bola. Ao reler o texto de ontem lembrei-me que tinha quebrado uma promessa feita a 27 de Maio. Não tornar a olhar para uma página de Eça de Queirós enquanto me lembrasse de que ele preferia, para acompanhar o célebre Bife à Marrare, capilé. Daqui podem-se extrair duas conclusões diferentes. A primeira afirma que este narrador é muito volúvel e muda rapidamente de opinião. A segundo sublinha que o mesmo narrador tem fraca memória. Cada um que escolha a conclusão que mais lhe agradar, havendo a possibilidade, ainda, das duas serem verdadeiras ou das duas serem falsas. Outra coisa em que sou obrigado a mudar de opinião é o cumprimento do horário da consulta pelos médicos. Hoje, fui consultado na hora marcada. O problema é que isto poderá ser apenas uma idiossincrasia daquele médico, um electrofisiologista cardíaco (tradução: electricista do coração), que, descobri, fez o curso enquanto aluno da Academia Militar. Ninguém pode chegar tarde à guerra e isso entranha-se na vida civil. Obrigar a todos os futuros médicos a fazer o curso ao mesmo tempo que frequentam uma academia militar seria um contributo decisivo para a pandemia do atraso com que os facultativos (estive quase a chamar-lhes esculápios) chegam às consultas. Ocorre-me, agora, que talvez por serem facultativos a presença a horas também seja facultativa.
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