sábado, 4 de novembro de 2023

Do prazer estético

Está um tempo chuvoso e sombrio. Dito de outra maneira, está um belo sábado, cheio de melancolia e com a promessa de uma tristeza que se derrama nas águas caídas do céu. Não é a Terra que sofre mágoas inexplicáveis, mas a morada celestial que não consegue conter a cinza da sua dor. Leio e releio o prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura. Faço-o de um modo intolerável. Não procuro ali conhecimento, mas um prazer estético que a repetição faz nascer no leitor. A frase de abertura é espantosa: A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. A técnica usada por Kant é claramente romanesca, mostra a personagem dilacerada pelo seu singular destino, na verdade, um tormento, quase que me atreveria a dizer uma paixão, onde o desejo que a natureza lhe deu é limitado pela impotência com que essa mesma natureza a cobriu. O prazer estético, todavia, vai muito para além do parágrafo de abertura. As metáforas que o autor semeia no texto são outra fonte de volúpia. A Metafísica a certa altura é um teatro: O teatro destas disputas infindáveis chama-se Metafísica. Logo a seguir, passa a ser uma rainha: Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada a rainha de todas as outras. E o texto prolonga-se de metáfora em metáfora, para que o leitor descubra que os cépticos afinal são nómadas e como tal repugna-lhes estabelecerem-se definitivamente numa terra. Tudo isto ainda antes de chegar a fim da segundo página. Antecipando o destino de Maria Antonieta, também esta rainha terá de comparecer perante um tribunal. Dir-se-á que o tribunal kantiano não é um tribunal revolucionário. Já estive mais convencido disso, pois a nobre rainha sai do processo condenada à morte. É decapitada. Ora, o enorme processo a que ela é sujeita, cerca de 700 páginas na edição portuguesa, talvez seja tão irracional quanto aquele que conduziu o empregado bancário Josef K. à morte, em O Processo, de Kafka. Aliás, há, quase no fim do prefácio kantiano, um sinal de um destino comum, quando o filósofo de Konigsberg diz: a metafísica outra coisa não é que o inventário, sistematicamente ordenado, de tudo o que possuímos pela razão pura. Afinal a nobre rainha não passa de uma peça de contabilidade, melhor dizendo de uma contabilista, como de alguma maneira o seria Josef K. São quase duas da tarde e aqueles que espero para o almoço ainda não chegaram.

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