Está um tempo chuvoso e
sombrio. Dito de outra maneira, está um belo sábado, cheio de melancolia e com a
promessa de uma tristeza que se derrama nas águas caídas do céu. Não é a Terra
que sofre mágoas inexplicáveis, mas a morada celestial que não consegue conter
a cinza da sua dor. Leio e releio o prefácio da primeira edição da Crítica da
Razão Pura. Faço-o de um modo intolerável. Não procuro ali conhecimento, mas um
prazer estético que a repetição faz nascer no leitor. A frase de abertura é
espantosa: A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos,
possui o singular destino de se ver atormentada por questões, que não pode
evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar
resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. A técnica
usada por Kant é claramente romanesca, mostra a personagem dilacerada pelo seu
singular destino, na verdade, um tormento, quase que me atreveria a dizer uma
paixão, onde o desejo que a natureza lhe deu é limitado pela impotência com que
essa mesma natureza a cobriu. O prazer estético, todavia, vai muito para além do
parágrafo de abertura. As metáforas que o autor semeia no texto são outra fonte
de volúpia. A Metafísica a certa altura é um teatro: O teatro destas
disputas infindáveis chama-se Metafísica. Logo a seguir, passa a ser uma rainha:
Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era chamada a rainha de
todas as outras. E o texto prolonga-se de metáfora em metáfora, para que o
leitor descubra que os cépticos afinal são nómadas e como tal repugna-lhes
estabelecerem-se definitivamente numa terra. Tudo isto ainda antes de chegar a
fim da segundo página. Antecipando o destino de Maria Antonieta, também esta
rainha terá de comparecer perante um tribunal. Dir-se-á que o tribunal
kantiano não é um tribunal revolucionário. Já estive mais convencido disso,
pois a nobre rainha sai do processo condenada à morte. É decapitada. Ora, o
enorme processo a que ela é sujeita, cerca de 700 páginas na edição portuguesa,
talvez seja tão irracional quanto aquele que conduziu o empregado bancário
Josef K. à morte, em O Processo, de Kafka. Aliás, há, quase no fim do
prefácio kantiano, um sinal de um destino comum, quando o filósofo de Konigsberg
diz: a metafísica outra coisa não é que o inventário,
sistematicamente ordenado, de tudo o que possuímos pela razão pura. Afinal
a nobre rainha não passa de uma peça de contabilidade, melhor dizendo de uma
contabilista, como de alguma maneira o seria Josef K. São quase duas da tarde
e aqueles que espero para o almoço ainda não chegaram.
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