sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Rêveries

Cheguei a pensar que hoje era dia 18, mas percebi que não, que o tempo não tinha acelerado, que até agora a natureza se mantivera idêntica ou uniformemente regular. Não permite saltos no tempo, pois terá medo de cair num abismo qualquer. Quando percebi que ainda estávamos a 17, decidi ir espairecer, caminhar pelas ruas da cidade, acumular pontos cardio, observar, enviesando os olhos, o movimento, que era intenso. Intenso, neste lugar quase esquecido pelos deuses, será uma hipérbole, mas, comparado com outras horas do dia, a figura de estilo não será errada. Naquela hora crepuscular, a cidade tingia-se de sombras e um cinzento prateado que descia do céu foi, ao longo do meu passeio, escurecendo. Entrei em casa quando chegava a noite. Rousseau, o genebrino Jean-Jacques, deixou para publicação póstuma e inacabada, as Rêveries du promeneur solitaire. Como ele, também eu sou um passeante solitário. Como ele, também eu sou acometido por rêveries, mas são tão insípidas que logo as esqueço. Se um acaso me proporciona alguma meditação que poderia partilhar com o mundo, o facto de não a poder prender em mim faz com que ela se desvaneça. Poderia gravá-la no telemóvel enquanto ia caminhando, mas temo que achem que enlouqueci e chamem uma ambulância para me internar. Assim, finjo que vou concentrado nos caminhos, mas deixo a mente perdida em fantasias de pouco relevo. Chegado a casa, sento-me e tudo se apaga, como se fosse um sonho nocturno que o espírito, pela manhã, recorda, mas que logo se apaga. Estou pouco inspirado, vou continuar a minha leitura. Sua Alteza Real, Nicolau Henrique, anda a arrastar a asa à menina Imma Spoelmann. Será que a Fraülein se disporá a abrir o coração ao arrastador? Tenho ainda umas dezenas de páginas para o saber. Não se trata de uma novela de má fama, mas do romance Sua Alteza Real, de Thomas Mann, onde, perante os olhos do leitor, a velha aristocracia perde o sentido da sua existência. Coisa que acontece a tudo o que existe. Primeiro perde o sentido e depois a própria existência.

4 comentários:

  1. Ainda estou indecisa entre ver primeiro Paul Schrader ou Ken Loach, ou seja, entre A Gaia Ciência e o Inconveniente de ter Nascido.

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    1. Talvez pudesse ser - venha o diabo e escolha -,mas não neste caso. Portanto optei pela razão em primeiro lugar; pela emoção no segundo.
      Sobre Thomas Mann, fiquei muito curiosa com a descoberta recente da sua amizade com um cão de caça. Afinal o que fez Aschenbach senão perseguir incansavelmente o belo, sem nunca o conseguir apanhar?

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    2. Talvez aquilo que constitui a beleza do belo é o não ser capturável. A Morte em Veneza não é contudo a obra de Thomas Mann que tenha despertado em mim o maior interesse. A Montanha Mágica e Doutor Fausto, a cuja leitura espero voltar um dia destes.

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