terça-feira, 14 de novembro de 2023

Tarde de Verão

Tarde é o que nunca vem. Eis uma sensata expressão da sabedoria popular. Ora, o famoso Verão de S. Martinho acabou por chegar, trazendo sobre a cidade uma luz viva, apesar de esbranquiçada. Faltou ao encontro marcado com o dia de festejo do santo, mas veio em silêncio como se não fosse nada com ele. Estamos perante um caso de manifesta subversão na hierarquia dos poderes celestes. S. Martinho terá descido nela, mas talvez não tanto quanto se pensava. É preciso estar atento aos sinais e praticar com cuidado uma hermenêutica rigorosa e atenta ao conflito das interpretações. Aproveitando uma aberta nos afazeres, desloquei-me a uma loja que também vende livros para levantar dois que tinha encomendado online. Em frente do estabelecimento comercial há um bar que vende uns óptimos pastéis de nata. Dirigi-me a ele, antes de ir buscar os livros, mas não estava ninguém por detrás do balcão. Fui buscar os livros e voltei. Ninguém, apenas uns belos pastéis de nata a rirem-se para mim. Esperei um pouco, e descubro um papel no balcão dizendo: Peço desculpa, volto já. Aceitei as desculpas, esperei mais, mas quem devia voltar não voltou. Fui-me embora. Que hermenêutica fazer destes acontecimentos? Que não devo comer pastéis de nata? Que não os devo comer quando compro livros? Que não devo comprar livros? É isto que se chama conflito das interpretações. Há outras hipóteses que não eliminam estas. Por exemplo, o funcionário foi abduzido por extraterrestres para lhes ensinar como se vendem pastéis de nata. Outra hipótese é ter desistido do emprego e, para mascarar a situação, deixou aquele aviso. Temendo que ele tenha sido mesmo abduzido, passado um minuto, fui-me embora, antes que os extraterrestres voltassem e me levassem a mim para lhes explicar o que é o gosto de um pastel de nata. Uma decisão sábia, pois não fui abduzido e posso estar agora a narrar estes acontecimentos. E os livros? Bem, julgo que os extraterrestres já passaram a fase da leitura de livros e pouco interessados estariam em Irène Némirovsky ou Henrik Pontoppidan. Está uma tarde de Verão. De S. Martinho, claro.

4 comentários:

  1. Os pastéis de nata extraterrestres são, por conseguinte, pastéis de nada, o que me parece um consolo de consoante.

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  2. e um desconsolo de utente

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  3. Uma consoante com a veleidade do que é consuetudinário. Arre!

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