Devia pegar em mim e pôr-me a caminho. Melhor, pôr-me no caminho, que é o sítio onde se caminha, o que, consta, faz bem à saúde. Talvez ainda seja cedo para que a caminhada tenha uma tonalidade romântica. Um pouco mais tarde e poderei dizer caminhei ao crepúsculo. Para adensar o romantismo poderei mesmo dizer um ser crepuscular caminha ao crepúsculo. A preguiça, contudo, diminui-me a veia romântica e deixo-me estar sentado, enquanto a soprano Ingrid Kappelle, acompanhada pelo pianista Håkon Austbø, canta melodias de Olivier Messiaen. Recordo-me bem qual foi a primeira peça que ouvi do compositor francês. A sinfonia Turangalîla, mais tarde fascinou-me o Quatuor Pour la Fin du Temps. Desconfio que Messiaen é muito mais forte do que a ideia de caminhar. Fico sentado, a música, como o tempo, esvai-se, e eu deslizo com ela e com o tempo para esse lugar onde todas as caminhadas encontram a sua meta. Observo as metamorfoses do céu, a declinação da luz, o crescer das sombras à procura da escuridão que lhes trará a paz da noite. Hoje já tive a minha dose de videoconferências, pratiquei com afinco aquilo que não leva a lado nenhum. Para ser mais exacto, tornei-me num asceta da inutilidade. Por vezes, considero que falhei a existência. Deveria ter dado em trapista ou cartuxo. O problema, porém, é que teria de renunciar à minha condição de narrador e no caso plausível de optar pela Cartuxa, deveria cultivar o silêncio. Isso seria um bem para o mundo, menos uns disparates lançados por aí, mas talvez um mal para mim, pois narrar é libertar-me das ideias absurdas que se desenham na minha alma. Escolhendo o silêncio, o absurdo acumular-se-ia em mim e correria o risco de explodir. Um espectáculo degradante. Vou caminhar e levo o Messiaen no telemóvel.
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