Aos sessenta e nove anos era uma bela mulher, o tempo poupara-a e a pele ainda não cedera ao poder das rugas. Vejo-o numa fotografia. Contemplo longamente os seus olhos azuis, a pele branca, o cabelo cendrado. No rosto, há vestígios de um calvinismo que o tempo não terá conseguido apagar e nos olhos uma hesitação entre a melancolia e a altivez. Imagino-a alta e fantasio os olhares dos homens que, ao passar, ela prende, mesmo quando os setenta anos lhe batem à porta. Descubro que a infância e a adolescência não terão sido fáceis, o mundo nem sempre é afável para com as pessoas, mesmo se lhes foi dado o dom da beleza. Olho pela janela do escritório, descubro que o Verão de S. Martinho acabou, e o dia repousa na cinza outonal que cobre a cidade. As folhas das acácias entregam o verde que as cobria num amarelo cor de limão. Tinha um compromisso às duas e meia da tarde, mas adormeci. Quando acordei, sorri e, em vez de ver no caso uma humilhação trazida pela idade, julguei que o meu corpo inclinado para o sono era muito mais sensato que a minha razão submissa a obrigações. Volto à fotografia e imagino aquela mulher aos quarenta anos ou no dia em que comemorou os vinte. De súbito, descubro-lhe, no devaneio, os traços de Eduína, essa amiga que me deixou em herança três cadernos escritos que vou lendo muito lentamente, com a relutância de quem é tocado pelo pudor perante os segredos dos outros, mesmo que a herança seja uma forma de confissão.
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