sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Evitar a litania

Poderia começar por entoar a litania das sextas-feiras em honra da aproximação do fim-de-semana. Seria um início justo, mas não glorioso. A glória está para além da justiça. Uma coisa justa é uma coisa ajustada. Ora, a glória transcende o ajustamento, a adequação. O glorioso é desadequado, por excesso de adequação; é desajustado por sobejo de ajustamento. Leio a palavra samovar e imagino-me dentro de um romance russo. Aqueço a água para preparar o chá. Tudo isto, porém, é falso. Não possuo um samovar, não estou a aquecer água nem numa cafeteira eléctrica, nem sou um adepto do chá. Também não sou russo, sou apenas um meridional com nostalgia das terras do Norte. Depois da minha viagem por um romance de Thomas Mann, comecei outra num da Irène Némirovsky. Estas são as minhas viagens preferidas, contrariamente às viagens turísticas. Há pessoas que fazem viagens turísticas, mas estão convencidas que não são turistas, pois o seu viajar, por ser de uma outra ordem, embora não consigam explicar qual é essa ordem, tem uma distinção tal que não se confundem com a plebe turística. Cada um tem as ilusões que deseja, pode imaginar-se como aristocrata no século XVIII ou bombeiro voluntário no século XXII. Como não possuo alma de turista, tenho sempre uma certa resistência a deslocar-me, mas quando o faço vou convicto de que não passo de um mero turista, apesar de acidental. Contudo, se viajo num romance sinto-me um não turista, alguém que mudou de país e se instala aí, nessa nova pátria. Ler é instalar-se num universo em que se pode deambular sem sair do mesmo sítio. E é isso o que mais gosto, ser plenamente fiel à minha condição de provinciano sem mundo. Há quem sussurre aos meus ouvidos que não passo de um comodista. Eis um epíteto que transporta uma acusação moral, da qual não tenciono defender-me. Sempre evitei a litania das sextas-feiras.

Sem comentários:

Enviar um comentário