terça-feira, 21 de novembro de 2023

Dom da ubiquidade

Alguém escreveu que as pessoas têm interesse de serem autores de si próprias. Imagino-me a ser autor de mim mesmo, a criar-me, fazendo-me vir do nada. O facto de as pessoas terem esse interesse apenas mostra que possuem muita presunção. Apesar de não ter sido Sartre o autor da frase, ele poderia subscrevê-la, com aquela história da existência precede a essência. A minha experiência de narrador prova o contrário. Eu não sou autor de mim próprio, mas uma criação de um autor com o qual tenho uma pendência nunca dirimida. Esse autor de mim, porém, não é autor de si mesmo, mas uma espécie de cuidador que tenta evitar que esse si mesmo, criado por outros, não se transvie. É nesse cuidado de si que se enxerta a ilusão de se ser autocriador. Ora, cuidar de mim já é uma tarefa suficientemente árdua, mais árdua seria a de ser autor de mim. Como se pode observar pelo escrito anteriormente, estou sem assunto digno de anotação. Seja como for, o que eu queria era ilibar-me da verrina de presunção, confessando, com humildade, que estou inocente do crime da minha autoria. Acabei de receber um telefonema solicitando a minha presença num certo sítio a uma certa hora de um certo dia. Ora, a essa hora desse dia eu terei de estar num outro lugar. Fosse eu criador de mim mesmo ter-me-ia dotado do atributo da ubiquidade. Como não o possuo, está provado que não sou autor de mim mesmo.

5 comentários:

  1. Ainda pode decidir cancelar o narrador ou o autor, ou ambos. Embora a censura fosse mais certeira, nomeadamente quanto ao assunto.

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    1. Um narrador tem a mais frágil das posições. Não se pode cancelar a si mesmo. Também não pode cancelar o autor. Se, por acaso, censurasse o assunto, de que iria ele falar? Um narrador está é a mais impotente das figuras.

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  2. Então quem tem o dom da ubiquidade?

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    1. Ninguém, nem o autor. Consta que alguns santos tinham o dom da ubiquidade, mas nem narrador nem autor parecem, neste caso, dignos da glória dos altares. Nenhum deles terá o poder da ubiquidade, portanto.

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    2. Talvez os poetas, mas só alguns, tenham também esse dom.

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