sábado, 25 de maio de 2024
O verdadeiro niilismo
sexta-feira, 24 de maio de 2024
Nunca falhamos
O dia já esteve quente, permitindo aquela experiência de alívio e pacificação que se dá quando se vem do calor e se chega a casa. As orquídeas estão belíssimas, mas há ainda algumas por florescer, serôdias. Talvez uma ou outra não o faça. De uma das janelas avisto dois jacarandás. Um está coberto por um manto lilás azulado, mas o outro falhou o grande espectáculo. Aliás, todos os anos é assim. Terá sido plantado em lugar inapropriado. Isso também acontece a muita gente. Plantada em lugar que não é próprio, falha o grande momento. O que será para um ser humano o grande momento? É a vida. Por longa que seja, não passa de um momento e não haverá momento maior para alguém do que esse. Daqui a uma semana, Maio estará no seu último dia. Mais umas horas e evaporar-se-á, não para atmosfera, mas para o nada, que é o sítio de onde vem e para o vai o tempo. O tempo é a estrada que liga os vários – os infinitos – nadas. É por ela que vamos e, por estranho que pareça, nunca nos enganamos no caminho. Nunca falhamos o nada.
quinta-feira, 23 de maio de 2024
Acumulações
Os dias continuam a crescer. A temperatura, agora, também aumenta. Nesta corrida, os dias vão perder. Vão cessar de aumentar mais rapidamente do que a temperatura. Eis uma meditação que não serve a ninguém. É assim que concebo a minha sabedoria. Um conjunto de informações inócuas, cuja finalidade não se descortina. Fui acumulando informação atrás de informação. Elas, as informações, em vez de se integrarem num todo harmonioso, acumularam-se num armazém sem ordem. Preciso de uma, então lanço a mão ao armazém e uso a primeira que me aparece. Basta olhar para estes textos. São fruto de lançar a mão e apanhar aquilo que aparece em primeiro lugar. O que acontece comigo, imagino que acontecerá com muitas outras pessoas, mas não tenho a certeza. Nunca fui outra pessoa. Já ser esta é uma tarefa hercúlea, quanto fará ser esta e outra. Talvez Fernando Pessoa, ao ser tantos, fosse, na realidade, um Hércules. Apesar disso, morreu cedo. Ser tantos pesou-lhe na alma e deu-lhe cabo do corpo. Se Pessoa vivesse hoje, iria ao ginásio. O exercício permitir-lhe-ia suportar-se a si e aos outos sis que ele era e prolongar a vida, para acumular mais sis. Ele acumulou sis, eu acumulo informações. São mais leves e, com o passar do tempo, elas vão desaparecendo do armazém. Não sei se elas são roubadas ou se saem pelo próprio pé. Conformo-me, pois devemos evitar a acumulação.
quarta-feira, 22 de maio de 2024
Profecias e exorcismos
Diante de mim, está pousado um romance que tem a guerra por pano de fundo. Trata-se de Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov. O facto de, nos últimos tempos, estar a deparar-me com romances que têm esse horizonte na sua narrativa, quererá o dizer o quê? Premonição ou esconjuro? Será aviso de profeta ou acto de exorcista? Sou um mero narrador, um ser virtual, submetido ao arbítrio do autor, um espírito racional e educado nos valores do Iluminismo. Foi assim que o autor me concebeu. Como tal, não tenho inclinação nem para profeta nem para exorcista. Contudo, não era de mim que falava, mas dessa disposição das coisas que teima em colocar perante os meus olhos esse tipo de literatura. Se há uma disposição, então terá de haver alguém que tenha essa disposição, terá de existir aquele que dispõe. Será ele, ou ela, que é profeta ou esconjurador e utiliza a literatura como instrumento para cumprir a sua missão. Não é indiferente se se está perante a acção de um profeta ou de um exorcista. Se for um profeta, ainda nos encontramos na fase da anunciação de um mal que poderá ocorrer no futuro. Se for um exorcista, então estamos já em plena vigência do mal e esta comunicação através de obras romanescas é um ritual usado para afugentar a malignidade que ainda por aí à solta. É o que me ocorre por hoje, dia em que não me ocorreu nada.
terça-feira, 21 de maio de 2024
Inflamações
segunda-feira, 20 de maio de 2024
Um acto de resistência
Uma experiência anacrónica. A anacronia, no caso, não é muito grande. Passou-se ontem. Um acaso levou-me ao lugar onde nasci, uma aldeia aqui perto. Parei o carro e fiquei à conversa com uma prima. A certa altura, vejo pessoas a espalharem verdura na estrada. Ia haver procissão. Faz sentido, deve ser domingo de Pentecostes e como a terra festeja o Espírito Santo, há procissão, pensei, enquanto ia conversando sobre coisas com décadas. Aproveitei mesmo para lhe desfazer uma ilusão. Estava, a minha prima, convencida de que eu tinha nascido em Lisboa. Uma falsidade, pois, apesar dos meus pais viverem na capital, eu nasci ali. Ora, o que me perturbou não foi a falsa crença de uma prima que não via há décadas, mas a procissão. Entre aquela que vi ontem e as que desenterrei da memória, de uma memória muito recuada, havia uma diferença abissal. Por certo, na coreografia, mas, acima de tudo, no número de fiéis. Ontem, eram tão poucos os que seguiam atrás dos andores, do pároco e da banda filarmónica da aldeia, que olhei estupefacto e, eu que nunca fui numa procissão, quase tive vontade de ir naquela. Para fazer número ou talvez para me solidarizar com as memórias que tenho de grandes procissões, com as raparigas com tabuleiros à cabeça, ajudadas pelos namorados ou afiançados, ou lá o que eles eram, seguidos pelos homens com opa vermelha da confraria do Espírito Santo. Ontem não havia raparigas com tabuleiros à cabeça, nem namorados, nem confrades do Espírito Santo, para além de quase não haver pessoas. Depois, pensei que aquilo que eu estava a ver era um acto de resistência. Aquelas pessoas, conhecia uma ou outra, estavam em luta contra a rasura do tempo. Já não têm poder para erguer uma festa ao divino Espírito Santo, como as havia ali desde o século XVII, mas ainda saem à rua, levam os andores e põem a banda a tocar. Pode ser a luta mais inútil, mas lutar contra o tempo é o combate que merece a maior das admirações.
domingo, 19 de maio de 2024
Finais felizes e alucinações
Decidi, após a leitura de um certo romance, pedir a um chatbot para fazer um resumo da obra. Ele começou muito bem, mas a partir de certa altura passou a alucinar e reconstruiu a história em modo cor-de-rosa, que não é, propriamente, a cor com que acaba o romance. Há duas explicações, pelo menos, para esta situação. A primeira é que há certas versões não romanescas da história em que esta tem um final feliz e o chat decidiu compor o resumo. A outra é que o chat não gostou do fim da história dado pelo autor e decidiu reescrevê-lo, compô-lo, como se fosse o proprietário de uma editora que quisesse vender livros ao público e tivesse como mercado as pessoas que consomem finais felizes. A literatura – e não confundir literatura com ficção em livro – não tem especial inclinação para finais felizes, mas é plausível pensar que são muitos os editores que precisam de vender livros a corações em busca de consolação. Depois, fiz uma nova tentativa com outra obra. Tentei em dois chatbots diferentes. A resposta foi muito mais adequada. Como a obra é muito mais recente e não deu origem a mil interpretações, ambos os chatbots evitaram alucinações e limitaram-se a fazer um resumo genérico da obra. Já reparei que um deles alucina muito mais do que o outro. Há nele qualquer coisa que me perturba. Tenta compor a realidade, tornando-a mais de acordo com certo gosto que ele presume ser do público. As versões pagas, segundo me dizem, são mais fiáveis, mas ainda não me predispus a solicitar serviços pagos. Se quero resumos, faço-os eu, embora não saiba por que razão hei-de querer resumos das obras que leio.
sábado, 18 de maio de 2024
A melancolia da distância
Por curiosidade, foi ver os eventos históricos referentes ao dia 18 de Maio. Entre 1096 e 2018, catorze dos eventos elencados estão relacionados com a guerra. Este é o principal desporto do homo sapiens sapiens. Somos uma espécie duplamente sábia, mas aquilo em que somos, efectivamente sábios, é matarmo-nos uns aos outros. Por horrível que isso seja, não podemos dizer que tenha sido um problema para a espécie, pois esta colonizou todo o planeta e colocou-o sob a sua alçada. Imagino, agora que penso nisso, que a questão da guerra não seja uma questão moral, mas biológica. Assim como no processo evolutivo desenvolvemos a linguagem articulada e, posteriormente, a escrita, também desenvolvemos o poder de nos matarmos. Dois desenvolvimentos inerentes ao processo de adaptação ao meio. Eis um pensamento sombrio, mas que está de acordo com o dia. Tem estado, felizmente, um Maio pouco dado a exuberâncias estivais, fazendo mais lembrar um tempo de Semana Santa, embora esta ideia de que há um tempo, um clima, próprio da Semana Santa não passe de um estereótipo, o qual, penso, não ofenderá a Semana Santa, mas nunca se sabe. Quando se considera a nossa espécie, a partir da cadeira de um escritório, não é possível reprimir a melancolia. Entre aquilo que imaginamos que podíamos ser e aquilo que somos, há uma distância sem fim, talvez infinita. A melancolia vem da constatação dessa distância que vai do ideal ao real, como se diria outrora.
sexta-feira, 17 de maio de 2024
Os caminhos para Roma
Ainda não decidi se vou caminhar junto ao rio ou se fico por casa. Haverá, claro, outras alternativas, mas deixo-as de lado, pois seria fastidioso fazer a sua enumeração. Há quem creia, todavia, que nunca temos alternativas. Estas seriam ilusórias, pois só podíamos fazer aquilo que fizemos, embora tenhamos a capacidade de pensar que poderíamos ter feito outra coisa. Os defensores do não há possibilidades alternativas, desde Baruch Espinosa até a certos cientistas dos dias de hoje, crêem que tudo está determinado. Ora, o que não se consegue perceber é a necessidade de termos desenvolvido uma capacidade de pensar que nos diz que para ir a Roma se podem escolher múltiplos caminhos – aliás, todos, pois todos os caminhos vão dar a Roma – e, na verdade, só haver para nós um caminho para ir a Roma. O facto de termos desenvolvido a capacidade de encontrar vários caminhos e a de deliberarmos sobre qual devemos tomar choca com esse determinismo insuperável. Tenho uma tese que me parece promissora. A vida é um longo caminho de afastamento do condicionamento determinístico da matéria. Quanto mais complexa for uma forma de vida, mais ela tem capacidade de descobrir várias vias para chegar a Roma, isto é, a onde quer. A única coisa que, verdadeiramente, dá fôlego aos defensores do tudo está determinado é a impossibilidade de se retroceder no tempo e voltar a uma certa situação e, não mudando nada da situação original, tomar uma decisão diferente daquela que se tomou, isto é, ir a Roma por outro caminho. Escolhi um péssimo tema para hoje, mas ainda estou a tempo de escolher outro, o de falar sobre o estado do tempo e da exuberância que se desprende do friso das orquídeas. Talvez vá caminhar junto ao rio, se tiver companhia.
quinta-feira, 16 de maio de 2024
Da alucinação
Comecei a escrever uma deambulação sobre alucinações e visões, um texto ainda mais obtuso do que aqueles que costumo escrever. Ao fim de uma dúzia de linhas, apaguei-o e lá se foram as visões e os estados alucinados sobre os quais ia discorrer para dizer nada. A maior parte das palavras que dizemos ou escrevemos são inúteis, penso-o muitas vezes, e se as não disséssemos ou não as escrevêssemos o mundo não perderia nada, antes pelo contrário. Como narrador, tento um equilíbrio entre a verborreia, que me habita a alma, e a ascese linguística que me aproximaria do silêncio. Aqui, todavia, reside, disfarçado, um problema. O silêncio ainda é uma forma de discurso. O facto de evitar as emissões sonoras ou o traçar gráfico de letras não significa que nada se diga. A pessoa que não fala pode incomodar não porque esteja calada, mas devido à sua loquacidade. Essa é uma experiência arcaica, da infância. O silêncio dos pais pode ser excessivamente ruidoso para os filhos. Comecei com as alucinações e as visões de que não falei e podia agora acrescentar audições. Cada um dos nossos cinco sentidos pode alucinar a seu modo. Sentir coisas, cheirar coisas, saborear coisas, para além de ver e ouvir coisas. E aqui parece existir mais uma gaffe da nossa evolução. Se desenvolvemos os sentidos, na longa caminhada até à humanidade que hoje somos, para entrar em contacto com o mundo, por que razão eles nos enganam, chegando ao ponto de produção de alucinações? Há uma possibilidade interessante. Não há nada de errado com os sentidos. Cada alucinação não é a produção de uma fantasia sensorial, mas uma entrada em contacto fugaz com uma realidade que, por norma, está oculta. O melhor é terminar a prosa, para não ser acusado de estar a alucinar. Pertenço a uma geração que não se coibiu de procurar alucinações por métodos ínvios, mas, digo-o para memória futura, nunca fui atraído por paraísos artificiais. Não tinha alma de Baudelaire.
quarta-feira, 15 de maio de 2024
Da anorexia dos caracteres e da felicidade dos canalhas
Estou a tentar ler um certo livro cujo título não vem ao caso, embora a sua matéria exija atenção ao texto. E é aqui que está o problema. O texto utiliza um tipo de caracteres, uma fonte, tão elegante, tão elegante, que os meus olhos têm dificuldade de lidar com tanta elegância. Pensando bem, não deveria falar de elegância da fonte, mas de anorexia. O estado anoréctico dos caracteres choca com os meus olhos. Estes, apesar da prótese a que damos o nome de óculos, já tiveram melhores dias e não lidam bem com todas as fontes que por aí pululam. A certa altura, leio o seguinte: É preciso reconhecer, entretanto, que há certas desordens nesta vida, que se mostram particularmente na prosperidade de muitas pessoas más e na infelicidade de muitas pessoas de bem. Há um provérbio alemão que chega a atribuir a vantagem aos maus, como se normalmente eles fossem mais felizes. Era isto que estava a ler e que estava a ser obliterado da minha consciência pelo estorvo provocado pela anorexia da fonte usada. E o que dirá, perguntará algum leitor, o provérbio alemão? Ora, o que haverá de dizer? Fica a tradução apresentada: Quanto mais curvada a madeira, tanto melhor são as muletas; quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Não querendo pôr em causa o espírito do povo alemão, tão bom a fabricar provérbios como qualquer outra coisa, acho o provérbio excessivo na dimensão e, na verdade, falhado. Bastaria que dissesse: Quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Seria um belo e exacto provérbio. Não se compreende a introdução de um raciocínio analógico. Que relação se poderá estabelecer entre a curvatura da madeira e a perfeição do canalha? E entre a qualidade das muletas e a grandeza da felicidade. Talvez o espírito alemão seja mais obscuro do que aquilo que um latino consegue enxergar, mas também é verdade que os meus olhos não estão nas melhores condições para enxergar seja o que for, apesar de eu viver no melhor dos mundos possíveis. Talvez me tenha perdido na tradução. Por falar em canalhas, segundo o dr. Johnson, Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. O dr. Johnson não escreveu a frase, apenas a proferiu na tarde de 7 de Abril de 1775, tendo sido registada pelo seu amigo, pupilo e biógrafo James Boswell. Terá sido o dr. Johnson um antipatriota? É duvidoso. O canalha é aquele que se serve do patriotismo para disfarçar os seus interesses egoístas, mas este é um assunto perigoso, pois entre por um campo, a política, que me é vedado pelo autor. Como narrador, aceito a limitação da minha liberdade. Fiquemos apenas pela felicidade dos canalhas, até porque o texto vai longo e não há quem tenha paciência para o ler. E estou certo de que os canalhas, chegados a velhos, ainda têm olhos para caracteres anorécticos. Daí a sua felicidade caso sejam dados à leitura, talvez a última.
terça-feira, 14 de maio de 2024
Idade metabólica
Hoje tive aquela sessão, que não será de todo inútil, com a nutricionista. Pesagens, medições, conversa, patati, patatá. Progressos nuns lados, retrocessos noutros. A idade metabólica, apesar de ter subido e não devia, está bastante lisonjeira, menos dez anos que a idade real. Aliás, estava a recuar demasiado no tempo metabólico e isso poderia ter efeitos deletérios que me recuso a congeminar. Seja como for, acho que devo comemorar os progressos existentes. Descobri um restaurante de comida brasileira e pareceu-me adequado para festejar a perda de peso e de perímetro abdominal. Também evitará recuos na idade metabólica. Não por acaso, deitei a mão a uma estante e tirei de lá o livro You must change your life, do filósofo alemão, Peter Sloterdijk. É isso que a frequência da nutricionista deveria querer dizer. Mudar de vida, abjurar a vida passada, os mil pecados da gula e, sob o comando da enviada do reino das pessoas saudáveis, entregar-me à ascese que me conduzirá não ao paraíso, mas à elegância e à saúde. O meu problema, porém, é que me falta fé, e cada vez que tenho dúvidas, o que é a propensão de uma razão crítica, abro o caminho para aumentar a idade metabólica. Uma chatice. Não serei o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro que não compreende por que razão aquilo que é agradável aos sentidos faz mal à idade metabólica. Há um erro no processo evolutivo da humanidade. Desenvolveu os sentidos também como fonte inesgotável de prazer e, afinal, o organismo só é saudável se evitar os prazeres. A minha esperança é a engenharia genética, que, no futuro, poderá intervir nos nossos genes e desligar os sentidos do prazer, focando-os na sobrevivência. Até lá temos de suportar esta luta infinita entre o prazer e a idade metabólica, ouvir as sorridentes homilias da enviada do reino da saudabilidade e não levar nada disto a sério.
segunda-feira, 13 de maio de 2024
Por uma natureza benevolente
Os dias úteis começaram carrancudos. Céu cinzento, tempo abafado. Alguém diz estamos no tempo das trovoadas de Maio, oiço responder pois estamos, pois estamos. E a conversa continuou, saltando de assunto para assunto, um modo de ocupar o tempo e de o deixar deslizar. Por certo que, por aqui, Maio tem as suas trovoadas, mas na minha memória são as de Junho que surgem mais rapidamente. Súbitas enxurradas, trovões e relâmpagos. A rua, onde vivi parte da infância, toda adolescência e mais alguns anos, enchia-se de água, que corria para outra rua mais abaixo, talvez com esperança de chegar ao rio. E chegava. Depois, vinha o sol e a Primavera começava a despedir-se do calendário. Hoje podia trovejar e chover, pois a atmosfera está acintosa, era bom que a natureza descarregasse a sua fúria, para depois, mais calma, deixar os mortais entregues aos seus afazeres. Não é bom que a natureza acumula fúrias, raivas, ressentimentos. Não lhe faz bem e quem paga são os homens. Não é que estes não mereçam castigo, mas deixemos isso a quem de direito. Não queremos uma natureza justiceira, mas benevolente e dotada de uma infinita paciência para nos aturar. Bem precisa. Hoje não me ocorre nenhuma ideia. O melhor é parar por aqui, antes que venha o crepúsculo e as sombras se adensem até cobrirem a terra com a folhagem extravagante da noite.
domingo, 12 de maio de 2024
Ser sábio
Em Algumas Lições sobre o Perfil do Erudito, de 1794, Fichte terá afirmado que o erudito deve ser, do ponto de vista moral, o melhor ser humano do seu tempo. Esta tradução do título Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten é equívoca. Fui buscá-la à tradução portuguesa de uma obra de Alexander Kluge, que faz a citação referida. Ora, a tradução francesa é Conférences sur la Destination du Savant, texto que trabalhei arduamente há décadas, mas do qual já não tenho memória. O tradutor automático da DeepL não propõe nem erudito nem sábio (savant), mas académico. A questão não é de somenos. Não se percebe por que um acumulador de informações (um erudito) terá de ser o melhor ser humano do seu tempo. Saber muitas coisas não faz de nós melhores. O mesmo se aplica ao académico. Por que razão o triunfo no mundo académico tornará melhor moralmente o triunfador? A tradução francesa por savant (sábio) é a mais pertinente. Ser sábio é muito mais do que acumular informações ou triunfar na academia, mas uma forma de saber conduzir a sua vida e a relação com os outros. O sábio é o que sabe, efectivamente, traduzir o conhecimento na acção, não porque age segundo um enquadramento teórico, mas porque a sua sabedoria se tornou carne da sua carne e espírito do seu espírito. O sábio é o que está aberto ao acontecer e sabe dançar a música dos acontecimentos. Por certo, esta concepção de sábio está longe daquela proposta por Fichte, que um dia me terá interessado, mas que o tempo, com a sua sabedoria, rasurou da minha memória. Olho para o livro anotado, reconheço a minha letra, mas, na verdade, já não me reconheço como autor dos comentários feitos com a letra que é a minha. Se não me desse trabalho, punha-me a apagar sublinhados e anotações, para retornar a ler aquilo que há muito li diversas vezes, sem me tornar mais sábio.
sábado, 11 de maio de 2024
O caminho da reiteração
Suspendi a marcha pela floresta das sinfonias de Mahler. O que me falta ouvir fica para a próxima semana. O fim-de-semana musical fica dividido entre o silêncio e a música contemporânea. Nesta comecei, com duas composições de Alfred Schnittke, Concert for Choir e Requiem. Agora, viajo por Maurice Kagel, Rrrrrrr… Anagrama e Mitternachsstuk. A parte final da viagem será com Frédéric Durieux, So schnell, zu früh, Devenir e Là, au-delà. Tudo isto proveniente de CD que já não ouvia há bastante tempo. Na música, talvez como em tudo, o importante é a reiteração. Ouvir uma e outra e outra vez. Esta repetição, porém, tem, desde há tempos, má imprensa, digamos assim. Fomenta-se a quantidade das experiências. Ver muitas coisas, ouvir muitas coisas, viajar por muitos sítios, ter muito amores, etc., etc. Isto, porém, não passa de um exercício superficial e este amor à multiplicidade experiencial é, na verdade, a confissão de uma impotência estrutural perante a verdadeira experiência, que não procura a multiplicidade infinita, mas procura o infinito que há na unidade. A repetição é uma aproximação a essa unidade infinita. Unidade sem fim, seria mais apropriado dizer. A repetição não é a queda na rotina, como um tempo apressado como o nosso pensa. Pelo contrário, é um processo de descoberta, pois a realidade, qualquer realidade, só se deixa conhecer pelo árduo esforço, e mesmo este não garante a apropriação que constitui todo o conhecimento. Voltando à música, a de Alfred Schnittke pertence a universo sonoro bem diferente dos de Kagel e de Durieux, que estão mais próximos, filhos de uma mesma cultura. Enquanto trabalho, deixo a música escorrer por mim. Por vezes, paro e fico apenas a ouvir. Outras vezes, deixo o silêncio reinar. As paredes da escola aqui ao lado reverberam, fustigadas pela inclemência do Sol. O fim-de-semana progride e isso não é uma boa notícia.
sexta-feira, 10 de maio de 2024
Esquinas
quinta-feira, 9 de maio de 2024
Dia da espiga
Não fui colher a espiga, hoje que é dia dela. Aliás, nunca participei nessas romarias ao campo, para colher a espiga e fazer um ramo que incluía ainda papoilas, malmequeres, pequenos ramos de oliveira, alecrim e videira. Uma festa claramente pagã e que acabou por coincidir com a festa cristã da Ascensão. Em tempos, a Quinta-Feira de Ascensão foi feriado nacional, mas agora só é feriado em alguns – são bastantes – municípios, como este em que me recolho. Não terá sido muito inteligente acabar com o feriado nacional. Os católicos festejariam a Ascensão, os pagãos iriam à espiga e os outros entregavam-se ao descanso, pois, contrariamente ao que se propaga desde a tenebrosa (por certo, por causa do carvão) Revolução Industrial, o homem não foi feito para o trabalho. Este é um mal, um castigo metafísico. Ora, se o trabalho tem essa natureza, o mais sensato será aliviar os homens, o mais possível, dessa punição. Punição como aliás decorre da própria palavra trabalho, que foi derivada de tripalĭu, um aparelho de tortura composto por três paus. Como a história das palavras nos conta coisas interessantes. Num tempo de grandes preocupações ambientais, seria sensato que um governo decretasse a Quinta-Feira de Ascensão, com a adenda de se considerar também Dia da Espiga, como feriado nacional, e todos fossem passear ao campo, fazer ramos e testar a sua resistência às alergias provocados por pólenes, pós e poeiras. Por ser feriado, tenho passado o dia a trabalhar e a ouvir as sinfonias de Gustav Mahler, dirigidas por Eliahu Inbal e executadas pela Radio-Sinfonie-Orchester Frankfurt, em gravações que datam do século passado. Este é o meu programa musical para hoje e os próximos dias. Daqui a pouco, mais à tardinha, irei caminhar junto ao rio, num lugar onde há papoilas e malmequeres. Não os apanharei, mas olharei para eles e ficarei grato pela sua existência, como pela existência do rio e dos chorões e salgueiros que por lá existem.
quarta-feira, 8 de maio de 2024
Ruminar o futuro
Hoje, decidi comprar um livro de Ursula K. Le Guin. É conhecida como autora de romances de ficção científica. Li dela apenas três romances do denominado ciclo de Terramar, o qual foi completado, mais tarde, por outros três, que nunca li. Estes romances fazem parte de uma literatura de fantasia, cuja personagem principal é um feiticeiro denominado Ged, o gavião, se bem me recordo. Não eram romances típicos de ficção científica ou de antecipação. A ficção científica foi um género que nunca me atraiu. Talvez seja o contraponto do romance histórico. Enquanto este ficciona o passado, a ficção científica fá-lo-á com o futuro. Talvez este género literário seja mais importante do que aquilo que eu tenho pensado. Não pela literatura em si mesma, mas pelo modo como a imaginação opera para trazer à linguagem as expectativas humanas, o modo como dentro de nós o futuro é ruminado. A compra de Do Outro Lado do Sonho, o romance de Ursula K. Le Guin, é uma tentativa de entrar nesse mundo narrativo, do qual, na verdade, só conheço o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A minha percepção é que esse tipo literário tem uma natureza distópica. Seria interessante perceber a razão por que o futuro é, por norma, antecipado como um lugar de trevas. Isto recorda-me a velha teoria das Idades do Mundo, em que a primeira Idade era a mais ditosa, a de Ouro e a quarta, a última, a Idade de Ferro, aquela que era tenebrosa por essência. Esta inversão da ideia de progresso talvez seja a fonte que alimenta a imaginação dos escritores de ficção científica, ou, porventura, de todos os escritores. O melhor dos mundos possíveis não está no presente, nem no futuro, mas pertence a um passado de que perdemos a memória, restando apenas vestígios inconscientes, cuja luz não é suficiente para iluminar o futuro.
terça-feira, 7 de maio de 2024
Ondina
Esta noite acabei de ler um conto – talvez fosse mais correcto classificar a obra como uma novela – onde uma das personagens centrais é uma ninfa ou um génio feminino das águas. O autor é Friedrich de La Motte-Fouqué, autor que desconhecia por completo e que um acaso depositou diante de mim a sua obra, Ondina, na tradução portuguesa. É um conto fantástico e mais um episódio daquilo a que se poderia chamar a legenda do amor no Ocidente. Não sou dado à literatura fantástica, mas talvez esteja numa fase de alteração do gosto. Nunca se sabe o que a idade traz aos seres humanos. Sobre aquilo a que chamei a legenda do amor no Ocidente, apenas posso remeter para a obra de um dos pais da Europa, Denis de Rougemont, no seu O Amor e o Ocidente. Presumo que ainda seja obra que mereça ser lida, embora a alteração do gosto tenha sido acentuada nas últimas décadas, e a influência anglo-saxónica tenha obliterado a atenção aos autores da Europa continental. Voltando à bela Ondina, ela abandona o seu mundo em busca de uma alma humana. É o máximo que posso adiantar, mas poderei acrescentar que a pretensão de Ondina será a de todos os seres humanos, quando abandonam o mundo do nada onde existiam, antes de serem concebidos, e são postos sobre a Terra. A partir daí buscam por mil caminhos encontrar e conquistar uma alma humana, a sua alma. A questão que se pode colocar é se eles a encontram ou a perdem, não por a terem, mas por não encontrarem a alma que seria a sua. O que me vale – acabo de o pensar – é não viver num tempo em que o Tribunal do Santo Ofício exercia os seus poderes nesta terra, pois estas formulações acerca da alma são heréticas. Heréticas ou não, são muito mais interessantes. Uma coisa é receber de mão-beijada uma alma na hora da concepção. Outra, bem diferente, é enfrentar o mundo, como D. Quixote, o cavaleiro da triste figura, para encontrar a sua alma. Que aventuras não há que empreender? Que ilusões não há que desfazer? Sim encontrar e conquistar a sua alma é uma prova difícil, mas todas as coisas belas são difíceis, como o escreveu um dia Platão.
segunda-feira, 6 de maio de 2024
Da fealdade das palavras e da origem das sombras
Uma sombra projecta-se no muro da escola aqui ao lado. Depois, desaparece. Este é o destino de todas as sombras, oiço dizer dentro de mim. Por uma vez, aquiesço, no sentido de condescendo com a opinião que foi soprada nem sei bem de onde e por quem, talvez um homúnculo que vive escondido nas terras escuras do meu subconsciente. Aquiescer é um verbo horrível. Não pelo seu significado, mas pela sua sonoridade. Há palavras assim, nascem feias e, por mais tratamentos de beleza que façam, nunca se tornam umas belas palavras. Há pelo menos três categorias de palavras feias. Uma categoria fonológica, em que a fealdade deriva do som, como o verbo aquiescer. Uma categoria semântica, em que a palavra é feia pelo seu significado; por pudor, omito um exemplo. Uma categoria do uso, em que a fealdade deriva da palavra ser usada para tudo e para nada, como a horrível palavra empreendedorismo. Imagine-se, agora, que uma palavra é feia pelo som, pelo sentido e pelo uso. Não haverá palavra que queira casar com ela. No muro, continuam a projectar-se sombras. Umas desaparecem rapidamente, outras permanecem, como a das árvores ou dos carros parados. Todos nós, dotados de bom senso – a coisa mais bem distribuída no mundo, pois, como ensinava o bom Descartes, não há quem queira mais do que aquele que tem – todos nós, dizia, afirmamos que as sombras naquele muro se devem a uma interposição de corpos opacos entre o muro e uma fonte luminosa. É sensato acreditar nisto. Seria, porém, insensato crer que aquelas sombras são emanações de um mundo interior ao muro e que chega até nós não sua vividez real, mas num estado penumbroso, pois perdeu a energia para se manifestar vivo e cintilante na superfície externa do mundo? Se esta hipótese parece inverosímil, há que sublinhar que ela tem um papel relevante na nossa sociedade. Oferece uma solução alternativa à explicação da sombra, o que assegura a concorrência no mercado das ideias e promove a liberdade de escolha dos cidadãos.