quinta-feira, 16 de maio de 2024

Da alucinação

Comecei a escrever uma deambulação sobre alucinações e visões, um texto ainda mais obtuso do que aqueles que costumo escrever. Ao fim de uma dúzia de linhas, apaguei-o e lá se foram as visões e os estados alucinados sobre os quais ia discorrer para dizer nada. A maior parte das palavras que dizemos ou escrevemos são inúteis, penso-o muitas vezes, e se as não disséssemos ou não as escrevêssemos o mundo não perderia nada, antes pelo contrário. Como narrador, tento um equilíbrio entre a verborreia, que me habita a alma, e a ascese linguística que me aproximaria do silêncio. Aqui, todavia, reside, disfarçado, um problema. O silêncio ainda é uma forma de discurso. O facto de evitar as emissões sonoras ou o traçar gráfico de letras não significa que nada se diga. A pessoa que não fala pode incomodar não porque esteja calada, mas devido à sua loquacidade. Essa é uma experiência arcaica, da infância. O silêncio dos pais pode ser excessivamente ruidoso para os filhos. Comecei com as alucinações e as visões de que não falei e podia agora acrescentar audições. Cada um dos nossos cinco sentidos pode alucinar a seu modo. Sentir coisas, cheirar coisas, saborear coisas, para além de ver e ouvir coisas. E aqui parece existir mais uma gaffe da nossa evolução. Se desenvolvemos os sentidos, na longa caminhada até à humanidade que hoje somos, para entrar em contacto com o mundo, por que razão eles nos enganam, chegando ao ponto de produção de alucinações? Há uma possibilidade interessante. Não há nada de errado com os sentidos. Cada alucinação não é a produção de uma fantasia sensorial, mas uma entrada em contacto fugaz com uma realidade que, por norma, está oculta. O melhor é terminar a prosa, para não ser acusado de estar a alucinar. Pertenço a uma geração que não se coibiu de procurar alucinações por métodos ínvios, mas, digo-o para memória futura, nunca fui atraído por paraísos artificiais. Não tinha alma de Baudelaire.

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