Uma experiência anacrónica. A anacronia, no caso, não é muito grande. Passou-se ontem. Um acaso levou-me ao lugar onde nasci, uma aldeia aqui perto. Parei o carro e fiquei à conversa com uma prima. A certa altura, vejo pessoas a espalharem verdura na estrada. Ia haver procissão. Faz sentido, deve ser domingo de Pentecostes e como a terra festeja o Espírito Santo, há procissão, pensei, enquanto ia conversando sobre coisas com décadas. Aproveitei mesmo para lhe desfazer uma ilusão. Estava, a minha prima, convencida de que eu tinha nascido em Lisboa. Uma falsidade, pois, apesar dos meus pais viverem na capital, eu nasci ali. Ora, o que me perturbou não foi a falsa crença de uma prima que não via há décadas, mas a procissão. Entre aquela que vi ontem e as que desenterrei da memória, de uma memória muito recuada, havia uma diferença abissal. Por certo, na coreografia, mas, acima de tudo, no número de fiéis. Ontem, eram tão poucos os que seguiam atrás dos andores, do pároco e da banda filarmónica da aldeia, que olhei estupefacto e, eu que nunca fui numa procissão, quase tive vontade de ir naquela. Para fazer número ou talvez para me solidarizar com as memórias que tenho de grandes procissões, com as raparigas com tabuleiros à cabeça, ajudadas pelos namorados ou afiançados, ou lá o que eles eram, seguidos pelos homens com opa vermelha da confraria do Espírito Santo. Ontem não havia raparigas com tabuleiros à cabeça, nem namorados, nem confrades do Espírito Santo, para além de quase não haver pessoas. Depois, pensei que aquilo que eu estava a ver era um acto de resistência. Aquelas pessoas, conhecia uma ou outra, estavam em luta contra a rasura do tempo. Já não têm poder para erguer uma festa ao divino Espírito Santo, como as havia ali desde o século XVII, mas ainda saem à rua, levam os andores e põem a banda a tocar. Pode ser a luta mais inútil, mas lutar contra o tempo é o combate que merece a maior das admirações.
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