sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

S. Gurosan, a gula e a bula

Valeu-me S. Gurosan, uma espécie de Senhor dos Aflitos em modo de comprimido efervescente. Não devia ter almoçado o que almocei. Não que me tenha entregado ao excesso de comida e bebida. Apenas uma refeição em restaurante, comida portuguesa, mas o corpo já não se conforma com essas tradições. Isto conduz a um estranho estado de conflito entre o corpo e o espírito. Este, apesar da sua natureza etérea, é condescendente e chega a impelir-me para certo tipo de prazeres. O corpo, todavia, protesta, amua, finge-se de indisposto, e de tanto fingir indisposição consegue mesmo indispor-me. Nesse momento recorro, depois de pedir a outros santos, a S. Gurosan para que me alivie das penas da indisposição. E ele, sem que lhe prometa nada, lá faz o seu papel. Contudo, se alguém pensa que a explicação do efeito se deve às propriedades do medicamento, posso dizer que está equivocado. Trata-se de um efeito metafísico. A efervescência do Gurosan age sobre o aparelho digestivo como se exorcizasse um demónio. Portanto, mais do que um medicamento, é um santo exorcista que escorraça do corpo o demónio que nele se introduziu através da gula, apesar de não ter sido grande a gula, nem a bula. Usei a palavra bula num sentido inédito. Não se trata nem de um documento pontifício nem daquele papelinho de letras minúsculas que aparece dentro de todas as caixas de medicamentos. Vou tentar explicar. Bula é um pecado, quase mortal. Se a gula é uma pecado ligado aos gulosos, a bula é um pecado vinculado aos beberosos. Esteve quase para entrar na lista de pecados capitais, mas foi afastado a tempo. É apenas um pecado venial. Portanto, apesar de não ter caído na gula nem na bula, mesmo assim tive de recorrer ao santo. Chega de contar as minhas aventuras e engrandecer a minha gesta. Deixo, porém, como prova da minha criatividade um novo sentido para a palavra bula e a invenção de um novo vocábulo: beberoso. Assegurei a minha entrada na história da língua portuguesa.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Espanto

Os dias estão frios. Esta afirmação trivial, uma mera constatação, esconde qualquer coisa de mais decisivo. O facto de a meteorologia, cada vez com mais precisão, anunciar o estado do tempo rouba às metamorfoses do clima o encanto que, até há pouco, se escondia nelas. Quando escrevi há pouco queria dizer décadas. Os avanços científicos, a capacidade de prever os acontecimentos, são benéficos. Sabemos como nos orientar no quotidiano e tirar partido do sistema de alertas. A contrapartida, porém, é a perda da surpresa e do que ela tem de sublime, isto é, de admirável ou de terrível. Claro, que dispensamos o terrível, queremos defender-nos dele, mas temos de pagar um preço. Temos de abdicar do espanto que nos faz pensar e abrir o espírito para aquilo que nos ultrapassa. Na Metafísica, Aristóteles refere que o início da filosofia se encontra no espanto. É esse espanto perante o incompreensível que move os homens a especular. O resultado desse movimento inicial foi o progresso do conhecimento, e esse progresso rouba-nos a capacidade de nos espantarmos, reservando-a para os especialistas, que cativaram para si a perplexidade perante o desconhecido. Tudo isto por causa de um dia frio que não apanhou ninguém de surpresa. Talvez esteja errado. Talvez me espante por não me espantar e por escrever coisas como esta que mais valia calar. Espanta-me a inclinação para a verborreia e amanhã ser sexta-feira, caso hoje seja quinta.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Os dados estão lançados

Nunca tinha lido. Aliás, não sabia nada do conteúdo, mas tinha a referência da obra há décadas. Refiro-me a Os Dados Estão Lançados(Les jeux sont faits), de Jean-Paul Sartre. Escrito como guião para um filme, em 1943, foi publicado em 1947. Comecei a ler na mais pura inocência, como um leitor ingénuo, sem saber o que ia encontrar pela frente. A certa altura, tenho uma iluminação. Trata-se de uma actualização, marcada pela filosofia do autor, do velho mito grego de Orfeu. Identificada a matriz geradora da obra, sabe-se o destino dos protagonistas e o desenlace da trama narrativa: um Orfeu perderá uma Eurídice. Contudo, há qualquer coisa que mantém a curiosidade na obra. Queremos saber como é que Orfeu e Eurídice se perderão um do outro. É esse o ponto que congrega a atenção do leitor, aquilo que o leva a suspender a descrença na ficção que está a ler e lhe permite avançar na leitura. Se há, nesta vida, uma coisa corrente, essa é um Orfeu e uma Eurídice perderem-se um do outro. Uns perdem-se porque nunca se chegam a encontrar, outros encontram-se, mas cansam-se. Haverá outros que será a morte que raptará um para o frio Hades, deixando o outro por cá. Sempre que se trata do amor de um homem e de uma mulher, as personagens arquetípicas são as do velho mito helénico. O destino de todos os amantes é, mais tarde ou mais cedo, perderem-se um do outro. Os dados estão lançados, efectivamente. Não pelas razões que Sartre congeminou na sua interpretação do mito, mas por uma coisa bem mais simples: a finitude humana.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Um dia para esquecer

Ocupado em múltiplas tarefas que deverão salvar o mundo, embora o mundo não queira ser salvo. A religião, no mundo ocidental, morreu, apesar de muita gente pensar que não. Contudo, o espírito religioso, com a sua missão salvífica, espalhou-se por toda a sociedade, e não há organização ou instituição que não queira salvar qualquer coisa. Basta que exerçamos uma função, seja a que for, para sermos parte de um enorme corpo sacerdotal, cujo fim é zelar pela salvação. Uns dedicam-se a salvar isto, outros aquilo, e ainda outros salvam qualquer coisa que lhes apareça diante dos seus olhos salvíficos. Não estou a sofrer de um delírio hiperbólico. Levamos um carro à oficina e ali estará um sacerdote que o confessará para o salvar. Não vale a pena falar dos médicos, pois são uma seita soteriológica conhecida há muito. Alguém que recorre a um advogado fá-lo na esperança da salvação. Todavia, há diversos ramos que oferecem a salvação em grandes doses, mas enfrentam o mesmo problema que as religiões ocidentais. Ao ardor dos salvadores não corresponde o zelo dos hipotéticos candidatos à salvação. Eu, um pobre diabo que não tem inclinação para a predicação nem para salvar seja quem e o que for, também, por vezes, sou mobilizado em exercícios de salvação. O resultado é sempre o mesmo: quem precisa de salvação não a quer. Pelo contrário, prefere a perdição, coisa que se pode perceber. É como descer a encosta da montanha: é muito mais fácil do que subi-la. A gravidade sempre foi amiga dos perdidos; ajuda-os na perdição. Acho que, depois das ocupações a que fui sujeito hoje, enlouqueci, como se pode ver pelo hermetismo deste texto. Há quem pense que essa afirmação é falsa, pois sofre de anacronia: já enlouqueci há muito, mas não dei por isso. Cada um pense o que quiser ou o que puder.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Entretenimento

O dia chegou agora à sua fase solar. Cansou-se da humidade e do cinzento, abriu-se e deixou que uma luz, ainda fraca, brilhasse sobre o casario. Na avenida, as pessoas caminham surpresas, levando numa das mãos um chapéu de chuva, agora inútil. A frágil reverberação dos telhados espelha a aproximação do crepúsculo, mas este ainda terá de esperar para se manifestar e predizer, como um profeta cansado, a chegada da noite. Entretive-me, durante a tarde, com o segundo livro da República, de Platão. Indispõe-se com os poetas – Homero e Hesíodo – por contarem mentiras sobres os deuses, fazendo deles um prolongamento dos homens, mas num grau mais vicioso. Temia o filósofo que essa visão dos imortais funcionasse como um modelo negativo na formação das novas gerações. Contudo, é possível pensar que os poetas prestaram um bom serviço aos homens. A atribuição de conduta viciosa aos deuses seria uma forma  de transferência da maldade humana para entidades imaginárias e, desse modo, uma forma de purificação das almas dos mortais. Os imortais, com a sua força, poderão arcar com o peso da maldade, mas os humanos não o podem suportar, apesar de a praticarem. No cristianismo, a purificação dá-se num processo confessional, mas no paganismo clássico essa purificação dá-se por um processo de deslocação. Se existe o mal, os culpados são os deuses. O processo será infantil, mas permite, por isso mesmo, manter a inocência. Não foi Platão que, por intermédio de um sacerdote egípcio, nos disse que os gregos são eternamente crianças? Esta minha meditação teve uma consequência. Trouxe de volta o cinzento do dia e a ameaça de chuva. O Sol, incomodado com a minha verborreia, correu a cortina de nuvens. Devia evitar pensar em coisas destas, por amor à humanidade que aprecia a cintilação solar.

domingo, 26 de janeiro de 2025

O primeiro dia da semana

Um domingo indisposto. Chuva, vento, apesar de não estar frio. Um dia em que tudo se inclina para ficar em casa, mas o aniversário de uma neta obrigou-me a enfrentar os modos pouco convidativos deste primeiro dia da semana. Ah… não, este será o último dia da semana. Há várias versões sobre este tormentoso assunto. Fui investigar. As tradições judaico-cristãs, entre elas a católica, vêem o domingo como o primeiro dia da semana. Já, segundo uma norma ISO – precisamente, a 8601 – o primeiro-dia da semana é a segunda-feira. ISO remete, em português, para a Organização Internacional de Normalização. E as normas por ela decretadas têm a função de unificar procedimentos internacionais. Dito de outra maneira, são produtos burocráticos cuja finalidade é uniformizar o que é diferente. Ora, em Portugal – como poderia ser de outro modo? – adoptou-se a regra burocrática e remeteu-se a tradição religiosa para o grande pântano das coisas não modernas. Por detrás disto, está uma análise da semana em que esta é vista a partir do primado da economia e do trabalho. Cinco dias de trabalho, dois de descanso. Para burocratas, cuja visão do mundo é menor que a dos cegos, não faria sentido começar a semana com um dia de descanso, a que se seguiriam cinco de trabalho, e, por fim, outro dia de descanso. Demasiada complexidade para mentes enteadas do cartesianismo. Talvez tenham pensado que pôr os dias de descanso no primeiro e no último dia da semana acabava por colocar o trabalho como uma interrupção do lazer, o que contraria o espírito moderno, tão dado à actividade. O descanso é um permissão benévola que se dá aos que teriam o dever de trabalhar todos os dias da semana. Contudo, não perceberam que a tradição religiosa ao colocar o primeiro dia da semana  no domingo tinha um sentido fundamental. O domingo, tal como o domingo de Páscoa, é começo de um novo mundo, o momento onde se concentra nos homens tudo aquilo que se manifestará durante a semana. Se os burocratas fossem sensatos, decretavam que o primeiro dia da semana seria o domingo. Contudo, se fossem sensatos, não seriam burocratas, nem andaria a ganhar a vida fazendo normas.

sábado, 25 de janeiro de 2025

Mordomo

De manhã, mas uma manhã já adiantada, fui à rua apanhar sol. Talvez fosse mais interessante dizer: fui à rua colher sol. A rua seria, então, um campo; imagino-o enorme e de terra escura, e o sol, uma planta bela e de tal modo atraente que todos a queriam levar para casa, para a iluminar e resguardá-la das trevas. Infelizmente, a realidade nunca é como a imaginamos. A rua não é um campo, e o sol é apenas a luz que nos chega de um astro distante, mas suficientemente perto para nos aquecer ou, mesmo, para incendiar o mundo. Impossibilitado de colher o sol, limitei-me a apanhá-lo bem de frente e, depois, voltei para casa, mas não trouxe nenhuma luz que a iluminasse e a protegesse das trevas que chegarão mais logo. Tenho de me contentar com a luz eléctrica, a qual é menos sublime, mas mais eficiente, tal como manda o cânone social dos tempos modernos. Se alguém me perguntar sobre o que caracteriza os tempos modernos – e os nossos dias ainda fazem, de modo tardio, parte desses tempos –, eu diria, sem ruborescer de vergonha, que são os tempos em que se trocou o sublime pelo eficiente. O sublime, oiço, não mata a fome; só a eficiência alimentará os milhares de milhões de almas esfomeadas, embora alimente mais as que não têm fome do que aquelas que, na verdade, a têm. Isto, porém, talvez sejam considerações que não caibam no âmbito desta casa, cujo proprietário me impõe limites estritos enquanto narrador. E se me perguntarem o que é um narrador – pergunta que não me farão, claro –, eu direi o seguinte: um narrador é um mordomo que administra uma casa por conta de outrem, o autor. O senhor de uma casa pode ter opiniões sobre a ordem do mundo; um mordomo, se as tem, não as deve ostentar, pois as suas opiniões são as do seu senhor, mesmo que discordem em absoluto, como é o caso. Por falar em mordomos, veio-me à memória um antiquíssimo uso da palavra. Mordomo era alguém que, de uma maneira que nunca percebi, estava ligado à festa da Igreja da terra onde nasci. Haverá mais mordomos destes por esse país fora. Mordomo por mordomo, prefiro estar às ordens do autor do que me ligar a festas. Da Igreja ou de outra entidade, pública ou privada. Sim, é uma servidão voluntária, como não se esqueceu de sublinhar o senhor Étienne de La Boétie, mas ele não saberia distinguir entre um autor e um narrador. Talvez não precisasse.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Sem assunto

Uma ida ao cinema, sessão das quatro da tarde. Alguns espectadores, não muitos. Uma característica comum. Todos tinham direito aos descontos de bilheteira para maiores de 65 anos. A certa altura um telemóvel tocou, alguém atendeu, como se estivesse na rua ou num café. Uma vez por outro ouvia-se um comentário. Apesar destes pequenos vícios materiais, a plateia tinha uma virtude. Ninguém se lembrou de comprar pipocas e passar o filme a mastigá-las. Uma experiência arcaica e que nunca me deixa de surpreender: entrar na sala de cinema em pleno dia e sair noite feita. Fico sempre espantado por o filme não ter tido o poder de suspender a passagem do tempo. Em mim, qualquer coisa, no subconsciente, espera encontrar o dia que tinha deixado ao entrar na sala escura. É com um esgar de contrariedade que recebo a noite. Depois, habituo-me. Chegado a casa, sem saber a razão, apetece-me continuar na via cinematográfica. Hesito entre começar a rever os filmes do conjunto que recebeu o título de Comédia e Provérbios, de Eric Rohmer, ou retornar a um já antigo amor alemão, Heimat, de Edgar Reitz, três séries de filmes, com 30 episódios, e que acompanham uma família alemã, de Hunsrück, na Renânia, entre 1919 e o pós Queda do Muro de Berlim. Não existe edição portuguesa. Tenho a francesa, isto é, a alemã com legendas em francês. É uma obra monumental, mas já a vi duas vezes e nunca considerei que estava a perder tempo. Existem dois filmes, também de Edgar Reitz, centrados na mesma família, mas no século XIX. Foram realizados depois da última série de Heimat. O Inverno tem as suas virtudes. Uma delas é convidar a ficar em casa a ouvir música ou a ver filmes. Talvez a ler. Decidi-me, vou ver La nostalgie du voyage, o primeiro filme de Heimat 1. Paul Simon volta da guerra.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Um castigo

Será que me é permitido retomar o post de ontem? Esta pergunta parece sem sentido, mas estes textos são, foram acontecendo, independentes uns dos outros. Não há continuidade neles. Acontecem ao sabor do vento. Alguém poderia dizer-me, e eu concordaria, são textos de um cata-vento. Nada a obstar. Por outro lado, nada me impede de dar continuidade ao texto de ontem. Será um acto de rebeldia contra o hábito. Ontem, reproduzi o começo de três obras literárias, o que me permitiu escrever sobre a liberdade de ir e vir. Hoje, para compensar as coisas, reproduzirei o fim dessas obras. Comecemos com a Fuga Sem Fim, de Joseph Roth: Não tinha profissão, não tinha amor, não lhe apetecia fazer nada, não tinha esperança nem ambições, e nem sequer egoísmo. // No mundo nunca houve pessoa tão supérflua. No final de A Trégua, Mario Benedetti escreve:  O escritório acabou. A partir de amanhã e até ao dia da minha morte, o tempo estará às minhas ordens. Depois de tanta espera, é isto o ócio. O que farei com ele? Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész:  Pois também lá, entre as chaminés, nos intervalos do sofrimento, algo se assemelhava à felicidade. Toda a gente me pergunta só pelas vicissitudes, pelos «horrores»: todavia, no que me diz respeito, é talvez essa experiência mais memorável. Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu lhes falarei na próxima vez, quando me perguntarem. // Se é que vão perguntar. E se eu próprio não me tiver esquecido. Com estes fins, ainda aprenderemos alguma coisa sobre essa liberdade de ir e vir? Aprendemos duas coisas, qual delas a mais terrível. Aprendemos, com os finais de Roth e de Benedetti, que não sabemos o que fazer com essa liberdade, como ela, na verdade, nos é estranha. A segunda coisa que se aprende, com o final do romance de Kertész, é que essa liberdade está longe de ser necessária para a felicidade. A liberdade é uma dádiva divina que o homem está longe de ser capaz de aceitar. Será isto o pecado original. Deus ofereceu ao homem a liberdade, mas este rejeitou-a em nome de uma suposta felicidade. Foi castigado, como todos sabemos.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Ir e vir

Todas histórias, quero dizer narrativas como romances, contos ou novelas, têm um começo. Também terão um fim, mas não é esse que me interessa. Pelo menos, por agora. Vejamos as primeiras linhas das obras que, por desvario, comprei hoje. A Fuga Sem Fim, de Joseph Roth, diz: Franz Tunda, primeiro-tenente, do exército austríaco, foi feito prisioneiro de guerra pelos russos em agosto de 1916.A Trégua, de Mario Benedetti, abre-se com: Só me faltam seis meses e vinte e oito dias para me poder reformar. Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész, tem o seguinte começo: Hoje, não fui à escola. Isto é, fui, mas só para pedir ao director de turma que me deixasse voltar para casa. Terão estes inícios literários alguma coisa comum? Na verdade, inscrevem-se num horizonte que os une. Num caso, alguém perda a liberdade ao tornar-se prisioneiro de guerra. Num outro, a personagem liberta-se da sala de aula. No terceiro caso, o segundo narrado, outra personagem ainda está presa ao trabalho, mas conta os dias em que a reforma o libertará. Em todos eles o que está em jogo é a liberdade. Não se trata aqui nem da liberdade metafísica, a que se dá o nome de livre-arbítrio, nem da liberdade política de poder intervir nos destinos da comunidade, mas de uma liberdade a que chamaria liberdade de ir e vir. Esta talvez seja a forma de liberdade mais importante para cada um e a mais ameaçadora para o grupo social e as instituições que dão corpo a esse grupo. Aquele que tem a liberdade de ir e vir torna-se imprevisível. Pode estar e não estar. Chega, subitamente; parte, se lhe apetece. Quando se pensa sobre o romance moderno, pensamos sobre o quê? Talvez o essencial desse romance se concentre nessa liberdade de ir e vir, isto é, na luta contra aquilo que a anula, como a prisão, o trabalho ou a escola, ou no combate pela libertação, pelo direito de se ser vagabundo sem que nada interfira nesse ir e vir.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Desando, mas não descorro

A tarde não me correu de feição. O mais exacto seria dizer: a tarde descorreu-me. O pior é que o verbo descorrer não existe e o  processador de texto que uso para escrever estas coisas assinala erro. Isto, todavia, é mais uma manifestação das injustiças que atravessam o mundo e que se manifestam na língua. Podemos dizer, sem que a censura ortográfica assinale erro, uma frase como andamos e corremos feitos loucos. Mas se queremos escrever desandamos e descorremos como velhos cansados e sem forças, logo cai sobre a palavra o traço vermelho. Permite-se que o verbo andar receba o prefixo des-, mas não nos é possível descorrer. Se houvesse racionalidade, e a justiça não fosse palavra vazia, poderíamos descorrer sempre que nos apetecesse. Não podemos. A língua é o horizonte das nossas possibilidades, e aquilo que não se pode dizer, não se pode fazer.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Dia péssimo

Um dia péssimo para sair por aí para enfrentar gigantes e matar dragões. Também um herói tem os seus limites e os meus manifestam-se nestes dias cinzentos, de chuva persistente, dias desagradáveis e sem tino. Por isso, não acrescentei qualquer feito à minha gesta. Limitei-me às rotinas diárias necessárias para pagar as contas ou a dormitar em frente do computador, pois heróis como Quixote, Cid ou Rolando só não dormitaram em frente de computadores porque, nos seus dias, não os havia. Coisa de que se ressentem muito, segundo dizem quando falam comigo. Asseveram-me mesmo que não é justo que eu possa construir a minha história recorrendo às tecnologias de informação, enquanto eles tiveram de esperar que alguém escrevesse as deles, truncando a realidade dos acontecimentos, diminuindo-lhes a bravura e ofuscando-lhes a glória. Sugeri-lhes que pedissem uma segunda oportunidade. Não houve estupefacção no seu olhar, mas apenas ironia. Pensas, disseram-me em coro, que não o fizemos já. Olhei-os, expectante. Silêncio, até que eu, incapaz já de suportar a ausência de diálogo, lhes perguntei: qual a resposta? Não há segunda oportunidade, ouvi.

domingo, 19 de janeiro de 2025

Adormecer o coração

Um domingo tão triste que o céu parece chorar. Pela amostra, torna-se evidente que não há coisa mais fácil de escrever do que frases kitsch. Contudo, há dias em que mesmo um narrador sisudo se entrega nas mãos da superficialidade, banhado por um sentimentalismo fétido, pronto para agradar ao gosto mais comum. É evidente que, caso queira adormecer o coração, pode argumentar que tudo é uma questão de gosto. Uns gostam de uma coisa, outros de outra, mas que, no fundo, tudo se equivale. Esta equivalência universal é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. Falsa porque aquilo que é mais difícil e mais exigente é mais valioso, independentemente do preço de mercado. Verdadeira porque são coisas humanas, e todas as coisas humanas se equivalem na morte. Morta a humanidade – e um dia ela desaparecerá – as suas diferenças serão tão importantes para o universo como são para nós as diferenças entre dois grãos de areia numa praia. Há um momento na vida em que acalentamos esperanças inauditas sobre a humanidade. Um dia, pensa-se, todos quererão o mais difícil e o mais exigente. Como se é ingénuo ao pensar que pode haver uma democratização do que é, por essência, aristocrático. Depois, descobre-se que a única verdade definitiva reside na igualização de tudo no oceano aplanador da morte. Dos indivíduos ou da espécie. Com uma tarde assim, é possível que D. Sebastião chegue amanhã de manhã.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Considerações sem história

Um sábado provinciano e sem história, o que não deixa de ser uma óptima notícia, pois sempre que a história se intromete, podemos esperar o pior. A grande megera nunca se contenta com o mero passar do tempo. Exige sempre pesados tributos e grandes holocaustos, mesmo quando se trata da pequena história de sítios sem importância ou da história privada, que não é uma história, mas uma colecção de memórias que o tempo há-de diluir na água turva dos anos. Sem história, fui, depois de almoço, comprar laranjas a uma aldeia, onde as vendem à beira da estrada. Os carros param, as pessoas saem deles, dirigem-se às bancas. Ali estabelece-se um diálogo frutuoso, pois os que saíram dos carros a eles voltam carregados de fruta. Do ponto de vista económico, talvez seja um mau negócio, para quem se desloca propositadamente, pois ao preço da laranja, não muito diferente do das superfícies comerciais, há que juntar o preço da gasolina. Ganha-se no sabor e no prazer de animar uma economia local, que não será muito diferente do que era há cinquenta anos. Na verdade, ir comprar laranjas é uma luta contra a história, uma guerra contra o tempo, uma montaria para caçar o passado. Este, porém, astuto e vivaço, nunca se deixa apanhar, empurrando-nos sempre para a frente, como se o presente estivesse num declive escorregadio e nunca se cansasse de se deslocar. Contudo, é nestes afazeres do quotidiano que como um autêntico ser para a morte, como disse Heidegger, me alieno na quotidianidade, talvez com esperança de que, por um passe de mágica, a história seja abolida e a minha finitude seja transmutada em eternidade. Coisa em que não acredito, mas que considero, como considero tantas outras coisas que não merecem consideração. Aliás, não passo de um considerador viciado em coisas que não merecem consideração.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Virtude viril

Para que não me esqueça de que tenho corpo, este decidiu constipar-se e prepara-se para uma das suas representações anuais predilectas: uma faringite, já que é impossível ter uma amigdalite, pois os órgãos necessários para tal foram-me extraídos não tinha ainda dez anos. Consta que era moda na época. Para evitar o desenlace da constipação, fui visitar a médica que me vai acompanhando nestas coisas. Fui premiado com um antibiótico para ser tomado durante três dias, além de uns medicamento coadjuvantes. Começo, deste modo, o fim-de-semana, incomodado, mas apenas isso. Tivesse febre e o caso seria outro, pois, nunca percebi porquê, mal o termómetro se lembra de passar a fronteira dos 37 graus e se aproxima perigosamente dos 37,5, sinto-me doente até à raiz do meu eu. Isto deveria ser uma vergonha. Talvez o seja, pois raramente deixo que a febre venha sobre mim. Há que evitar fazer figuras tristes perante terceiros. Já ouvi dizer a vários entendidos – isto é, a várias entendidas – que isso é coisa de homens. Uma mulher, diz esse coro trágico de sabedoras, pode ter 40 graus e resiste, um homem chegado ao tenebroso marco dos referidos 37,5 e está às portas da morte. Não sei qual a verdade destas constatações, embora desconfie que mais do que em evidências empíricas, se fundam nas velhas cantigas medievais de escárnio e maldizer. Seja como for, estou pronto para lutar e combater o dragão da febre, antes que ele dê razões para fornecer um assentimento empírico a essa mitologia zombadora da redundante virtude viril (as duas palavras têm a mesma raiz – vir, homem em latim – o que significa que apenas os homens podem ser virtuosos) dos homens.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Cultivar lugares-comuns

Nota-se bem que os dias estão maiores. A melhor coisa é começar com um lugar-comum, na ausência de uma ideia rutilante e inovadora. Os lugares-comuns, ao contrário do que se pensa, são coisas interessantes e estão longe de serem aquilo de que são acusados. Têm, diz-se, um odor sulfuroso a falta de originalidade, superficialidade e conformismo. Ora, um lugar-comum é um sítio onde entramos em comunidade. Dizer lugares-comuns é incentivar a comunhão, evitando a excentricidade de querer parecer original. As próprias originalidades só o são num contexto comum, num oceano repleto de lugares-comuns. Mesmo a sua superficialidade é aparente, pois uma superfície pode ser apenas a face visível daquilo que é profundo. Se tivesse talento para tal, faria do lugar-comum uma arte. E aqui devíamos considerar a distinção entre arte autêntica e arte degenerada. A arte degenerada é aquela que apresenta, através dos retorcidos da originalidade, aquilo que é o mais banal dos lugares-comuns. A arte autêntica é a que mostra como um lugar-comum o que é absolutamente original. Para esta arte falta-me o talento, que talvez me sobre para a outra. Independentemente destas considerações, a verdade é que os dias estão maiores e vão continuar a crescer até que, após um instante de pausa, comecem a diminuir. E nisto está a tragédia humana – ou a comédia. Mergulhados num mundo cíclico, uma promessa de eterno retorno, somos seres lineares, onde o fim não coincide com o princípio. Isto também é um lugar-comum, pois é fado que partilhamos com todos.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Ignorância ignorante

Começo com uma citação: Na falta de saber, escrevo. Isto não foi pensado por mim, mas aplica-se-me completamente. É a ignorância – uma ignorância que, ao contrário da de Sócrates ou da de Nicolau de Cusa, não é douta – que me motiva para ir escrevendo estes textos. Caso tivesse alguma sabedoria, teria vergonha deles e agiria em conformidade: não os escreveria. Como se sabe, a ignorância ignorante é atrevida. Transcrevi o pensamento de um outro, embora esse outro não se saiba bem quem é. O texto onde a frase está escrita é atribuído a Bernardo Soares, talvez também possa ser imputado a Vicente Guedes. O autor, porém, é Fernando Pessoa, mas suspeito que ele tinha vergonha dos seus textos e os atribuía a personagens que inventava ou que lhe eram reveladas em sonhos. A frase citada pertence a um fragmento que se inicia em tom polémico: A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. A polémica não nascerá da associação entre metafísica e loucura. Reside noutro lado. Será que a metafísica é uma forma de loucura latente ou, na verdade, uma forma de loucura manifesta? Essa loucura seria latente se os metafísicos fossem mudos e não escrevessem, mas logo que falam e dão à estampa as suas obras, não é possível objectar à natureza manifesta da loucura que é a essência da metafísica. Tudo isto tem um triste corolário. Além de loucos, os metafísicos, ao escreverem, são ignorantes. Como a minha metafísica está ao nível daquela que é dita como única por Álvaro de Campos, a de comer chocolates, só partilho com os metafísicos a ignorância, deixando a loucura só para eles. Eu, ao comer chocolates e escrever frivolidades, sou são, inteiramente sadio e saudável, de espírito.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Viagens no século XVII

Quase toda a gente ouviu falar de Isaac Newton, o pai da física moderna, essa disciplina que nasce de um casamento – talvez ainda hoje considerado espúrio – entre a física – na época, filosofia natural – e a matemática. O registo do casamento pode ser encontrado num documento de 1687 com o título Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, isto é, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. A verdade, porém, é que estas duas áreas já tinham sido observadas em ardente concubinato por Galileu Galilei, santo patrono dos cientistas, que morreu em 1642, precisamente o ano em que nasceu Newton. Ora, este teve interesses muito mais amplos do que a física, assunto que apenas ocupa cerca de 20% dos seus escritos. Cerca de 30% são ocupados com a alquimia e os restantes 50% com a teologia. O grande interesse de Newton parece ser, tendo em conta o volume produtivo, a teologia e não a física. O século XVII foi uma época estranha para nós que chegamos ao mundo três séculos depois. Um outro caso interessante está ligado à medicina – ou talvez à física. Trata-se da transfusão de sangue. Um tal Arthur Coga, cavalheiro desvairado, homem muito excêntrico e extravagante, formado em teologia pela Universidade de Oxford, permitiu que fosse usado numa demonstração pública, na Royal Society, de transfusão de sangue. A teoria, tal como conta Lisa Jardine, era que a transfusão curaria o desvairado cavalheiro da sua insanidade. O doador de sangue foi uma jovem ovelha, o que levou Coga a afirmar que estava a receber o sangue do cordeiro, isto é, o sangue de Cristo. A experiência foi realizada pelos doutores Lower e King, e foi um autêntico sucesso. E o sucesso maior, diga-se, os estimáveis e ousados anatomistas não o perceberam. Que a transfusão não tenha sido fatal para o extravagante Coga foi uma grande sorte. Num relatório, o dr. King esclarece que correu tudo muito bem, um sucesso, verificado por mais de quarenta pessoas. O paciente até bebeu um ou dois copos de vinho das Canárias e fumou uma cachimbada. Foi para casa, estando muito sóbrio e tranquilo, mais do que antes. Vistos com os nossos olhos, tanto os interesses de Newton por áreas tão díspares ou as experiências aventurosas no âmbito das transfusões de sangue são coisas da mesma índole do desvairado Arthur Coga, extravagâncias. Quando daqui a três séculos, os homens de então, caso os haja, olharem para os nossos feitos, que extravagâncias descobrirão eles? Todas as épocas têm dentro de si incontáveis excentricidades, mas só muito mais tarde chegarão aqueles que o descobrem, talvez para terem motivo de riso. O destino dos homens é serem ridículos aos olhos de alguém que virá muito depois e que os olhará com olhos que não vêem aquilo que os seus viram.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Falta de tempo

Imagino que seja um problema de falta de tempo. Tenho sobre o tampo da secretária três romances, todos norte-americanos, com largas centenas de páginas. O mais pequeno caminha para as setecentas, o intermédio quase chega às novecentas e o maior avizinha-se das mil. Corria no meu tempo de estudante a história – talvez não apócrifa – de que um antigo professor daquela casa, pessoa que nunca conheci, na defesa da tese de doutoramento se desculpou perante o júri do volume da tese, citando Pascal ou Voltaire, talvez Mark Twain: Não tinha tido tempo para a fazer mais pequena. Foi o que pensei ao manipular estas obras. Devem ser autores muito ocupados. Não tiveram tempo para escrever romances mais pequenos. É verdade que algumas obras-primas do século XX são enormes romances, alguns inacabados, por falta de tempo. Quando se tem tempo, põe-se um travão à expansão do universo romanesco e, se o tempo crescer, deve-se mesmo obrigar a que entre em retracção. Percebe-se que muitos romances dos nossos dias tenham dimensões colossais. Não serão poucos os autores que pensarão: o tempo não dá para nada.

domingo, 12 de janeiro de 2025

A precisar de repouso

Muito me cansam os fins-de-semana passados fora para descanso. Chego a casa exausto, a precisar de repouso. A minha inclinação é evitar estas actividades de retempero da energia, mas há que fazer cedências e ter a esperança de que, desta vez, se descanse mesmo num fim-de-semana de descanso. O problema reside na perspectiva com que se anuncia o acontecimento. Se tivesse sido anunciado como um fim-de-semana de actividade intensa, estaria neste momento a escrever que, afinal, não foi assim uma actividade tão violenta. Pelo contrário, até se relaxou um pouco. Talvez se pudesse mesmo dizer que se voltou a casa revigorado. O problema são as expectativas: são elas que desenham o horizonte e acabam por influenciar o juízo avaliativo que se faz. Depois de um fim-de-semana destes, falece-me a imaginação, a energia é diminuta e a vontade de fazer seja o que for é nula, incluindo a de escrever. Vou descansar do descanso.