De manhã, mas uma manhã já adiantada, fui à rua apanhar sol. Talvez fosse mais interessante dizer: fui à rua colher sol. A rua seria, então, um campo; imagino-o enorme e de terra escura, e o sol, uma planta bela e de tal modo atraente que todos a queriam levar para casa, para a iluminar e resguardá-la das trevas. Infelizmente, a realidade nunca é como a imaginamos. A rua não é um campo, e o sol é apenas a luz que nos chega de um astro distante, mas suficientemente perto para nos aquecer ou, mesmo, para incendiar o mundo. Impossibilitado de colher o sol, limitei-me a apanhá-lo bem de frente e, depois, voltei para casa, mas não trouxe nenhuma luz que a iluminasse e a protegesse das trevas que chegarão mais logo. Tenho de me contentar com a luz eléctrica, a qual é menos sublime, mas mais eficiente, tal como manda o cânone social dos tempos modernos. Se alguém me perguntar sobre o que caracteriza os tempos modernos – e os nossos dias ainda fazem, de modo tardio, parte desses tempos –, eu diria, sem ruborescer de vergonha, que são os tempos em que se trocou o sublime pelo eficiente. O sublime, oiço, não mata a fome; só a eficiência alimentará os milhares de milhões de almas esfomeadas, embora alimente mais as que não têm fome do que aquelas que, na verdade, a têm. Isto, porém, talvez sejam considerações que não caibam no âmbito desta casa, cujo proprietário me impõe limites estritos enquanto narrador. E se me perguntarem o que é um narrador – pergunta que não me farão, claro –, eu direi o seguinte: um narrador é um mordomo que administra uma casa por conta de outrem, o autor. O senhor de uma casa pode ter opiniões sobre a ordem do mundo; um mordomo, se as tem, não as deve ostentar, pois as suas opiniões são as do seu senhor, mesmo que discordem em absoluto, como é o caso. Por falar em mordomos, veio-me à memória um antiquíssimo uso da palavra. Mordomo era alguém que, de uma maneira que nunca percebi, estava ligado à festa da Igreja da terra onde nasci. Haverá mais mordomos destes por esse país fora. Mordomo por mordomo, prefiro estar às ordens do autor do que me ligar a festas. Da Igreja ou de outra entidade, pública ou privada. Sim, é uma servidão voluntária, como não se esqueceu de sublinhar o senhor Étienne de La Boétie, mas ele não saberia distinguir entre um autor e um narrador. Talvez não precisasse.
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