sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

S. Gurosan, a gula e a bula

Valeu-me S. Gurosan, uma espécie de Senhor dos Aflitos em modo de comprimido efervescente. Não devia ter almoçado o que almocei. Não que me tenha entregado ao excesso de comida e bebida. Apenas uma refeição em restaurante, comida portuguesa, mas o corpo já não se conforma com essas tradições. Isto conduz a um estranho estado de conflito entre o corpo e o espírito. Este, apesar da sua natureza etérea, é condescendente e chega a impelir-me para certo tipo de prazeres. O corpo, todavia, protesta, amua, finge-se de indisposto, e de tanto fingir indisposição consegue mesmo indispor-me. Nesse momento recorro, depois de pedir a outros santos, a S. Gurosan para que me alivia das penas da indisposição. E ele, sem que lhe prometa nada, lá faz o seu papel. Contudo, se alguém pensa que a explicação do efeito se deve às propriedades do medicamento, posso dizer que está equivocado. Trata-se de um efeito metafísico. A efervescência do Gurosan age sobre o aparelho digestivo como se exorcizasse um demónio. Portanto, mais do que um medicamento, é um santo exorcista que escorraça do corpo o demónio que nele se introduziu através da gula, apesar de não ter sido grande a gula, nem a bula. Usei a palavra bula num sentido inédito. Não se trata nem de um documento pontifício nem daquele papelinho de letras minúsculas que aparece dentro de todas as caixas de medicamentos. Vou tentar explicar. Bula é um pecado, quase mortal. Se a gula é uma pecado ligado aos gulosos, a bula é um pecado vinculado aos beberosos. Esteve quase para entrar na lista de pecados capitais, mas foi afastado a tempo. É apenas um pecado venial. Portanto, apesar de não ter caído na gula nem na bula, mesmo assim tive de recorrer ao santo. Chega de contar as minhas aventuras e engrandecer a minha gesta. Deixo, porém, como prova da minha criatividade um novo sentido para a palavra bula e a invenção de um novo vocábulo: beberoso. Assegurei a minha entrada na história da língua portuguesa.

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