A tarde não me correu de feição. O mais exacto seria dizer: a tarde descorreu-me. O pior é que o verbo descorrer não existe e o processador de texto que uso para escrever estas coisas assinala erro. Isto, todavia, é mais uma manifestação das injustiças que atravessam o mundo e que se manifestam na língua. Podemos dizer, sem que a censura ortográfica assinale erro, uma frase como andamos e corremos feitos loucos. Mas se queremos escrever desandamos e descorremos como velhos cansados e sem forças, logo cai sobre a palavra o traço vermelho. Permite-se que o verbo andar receba o prefixo des-, mas não nos é possível descorrer. Se houvesse racionalidade, e a justiça não fosse palavra vazia, poderíamos descorrer sempre que nos apetecesse. Não podemos. A língua é o horizonte das nossas possibilidades, e aquilo que não se pode dizer, não se pode fazer.
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