domingo, 26 de maio de 2019

Ai que prazer

Não posso dizer que o cumprimento do meu direito e dever de votar tenha sido particularmente espinhoso. Bastou-me sair do prédio, atravessar a avenida e entrar na escola onde me esperava a urna e o boletim de voto, onde havia de expressar a minha escolha do produto que decidi comprar no mercado eleitoral. Eu sei que não devia contaminar as nobilíssimas questões cívicas com o tagarelar rude e interesseiro da economia, mas hoje acordei com aqueles versos do Pessoa que dizem: Ai que prazer / Não cumprir um dever. Votar, votei, mas agora desforro-me com estas contaminações despropositadas. O dia está quente e as pessoas das secções de voto parecem ter inscrita nos rostos a saudade da beira-mar. Somos um povo atlântico e é com grande sentido de dever que há quem troque o oceano pelos cadernos eleitorais, o abrir e fechar daquela fina ranhura por onde o nosso voto entra para se despenhar no buraco negro das contagens eleitorais. Também eu, há muitas décadas, fiz parte das mesas das secções de voto. Depois, evaporei-me, embora as visite sempre com ar sério e não sei se compungido. Saí da secção de voto como quem sai de um confessionário, com alma limpa e pronto para a penitência.

2 comentários:

  1. E continuando no universo, agora no universo pequenino do nosso ínfimo planeta azul: será que a Europa também se vai despenhar num buraco negro, mais uma vez?
    Mas o HV fez bem não cumprir Pessoa hoje :)
    Maria

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    Respostas
    1. Parece que a Europa resiste e o Pessoa era um provocador, um grande provocador.

      HV

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