quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Misantropia

O dia ensarilhou-se logo de manhã por causa de uma encomenda. Por vezes, uma pequena perturbação na agenda imaginada é o suficiente para me turvar o humor. Talvez seja mentira, e o que me indispõe é ter vindo tarde de Lisboa e uma noite mal dormida. Também é possível que não seja nada disso e me tenha transformado num misantropo. Esta palavra que me deve ter chegado aos ouvidos devido à peça de Molière fez-me lembrar aqueles dias em que perorava sobre a misologia, esse ódio visceral à razão. Como a generalidade das coisas que faço, também essas perorações foram inúteis, como se pode ver por tudo quanto é sítio. Uma sirene rasga o tecido cru do silêncio e anuncia a aproximação das treze horas. Não tenho por hábito ler teatro, mas há muitas décadas, ainda mal barbado, li, em transe, Sófocles e o Sartre teatral. Na província, precisa-se de pouco para ficar extasiado. O que isso terá contribuído para a minha inutilidade está por apurar, mas não terá sido pouco. Pego no jarro e verto vagarosamente a água no copo. Oiço com atenção o som do líquido contra o vidro. Há muito tempo tive uma gata siamesa que, como todas dessa espécie, tinha umas manias muito peculiares. Só bebia água em recipientes de vidro. Sobre mim teve a vantagem de nunca ter lido Sófocles, nem Sartre, nem Ésquilo. Talvez tenha lido Shakespeare. Kant, tenho a certeza que o fez, naquelas horas em que eu tinha a Crítica da Razão Pura aberta defronte de mim e ela se empoleirava no meu ombro para ver o que eu estava a ler. Como nunca me censurou, imagino que terá gostado.

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