Na demanda da caderneta militar, afinal chamada carta de
identificação militar, acabei por descobrir um conjunto de velhos cartões que
medeiam entre os doze e os vinte e quatro anos. Ao olhar as fotografias, não
pude deixar de recorrer ao lugar-comum as aparências iludem. Entre aquilo que
pareço naquelas que vão dos dezassete em diante e aquilo que era e fazia há uma
tal incongruência que até eu tenho dificuldade em perceber. Talvez a vida de
toda a gente não passe de um monte de desacertos e desconchavos entre o que a sua
imagem diz e aquilo que se é e faz. Descoberto o documento militar, tive direito
a mais duas descobertas. A primeira diz-me que ele não serve para nada. A
segunda informa-me que aquilo de que preciso me vai dar um trabalho sem fim
para saber aonde me devo dirigir para o obter. Portugal é um exercício difícil,
um interminável quebra-cabeças feito de esquecimentos, omissões e segredos. Comecei
a ler uma obra de Hermann Broch cujo título original é Die Schuldlosen.
Os franceses traduziram como Les Irresponsables, os espanhóis como Los
Inocentes. Os portugueses não traduziram. Optei pelo castelhano, o título
francês parece-me demasiado interpretativo. A obra começa com a parábola da
voz. Os discípulos do rabino Leví bar Chemjo, perguntaram-lhe, tendo em conta
que nada existia que antes de ser criado por Deus, por que razão – não havendo
quem O escutasse – o Senhor ergueu a voz ao começar a criação. A questão não
deixa de ser astuciosa. O rabino, contrariado, respondeu: A linguagem do
Senhor, gloriosa como o Seu Nome, é uma linguagem silenciosa e o Seu silêncio é
a Sua linguagem. O Seu ver é cegueira e a Sua cegueira é ver. O Seu fazer é
não-fazer e o Seu não-fazer é fazer. Voltai para vossas terras e meditai sobre
isto. Também eu que não sou seu discípulo devo meditar por que razão a
minha realidade e a minha aparência se desacertam, pois talvez a minha realidade
seja apenas a minha aparência, e a minha aparência seja a minha realidade. Este
calor enlouquece-me e tenho de sair para ir buscar a prescrição das análises
que esqueci no consultório.
Sem comentários:
Enviar um comentário