quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Requiem

Está nas últimas, este Agosto, mas mesmo nas vascas da morte há-de prolongar o seu espírito pérfido até bem dentro de Outubro, baforando calores e, como um dragão desatinado, lançando sobre a terra o fogo aceso com o fósforo dos infernos. Perante mim, repousam dois romances portugueses, um do ano de 1955 e outro de 1964. Em comum têm as folhas por cortar, o que me vai obrigar a um prolongado exercício, pois em conjunto somam quase 900 páginas. Um, o de 1964, ainda contém uma assinatura ilegível e a indicação de Lisboa /Dezembro /1967, assim como se fosse a estrofe de um poema experimental, onde nem faltou o aspecto gráfico de um traço sob o ano. O outro não tem vestígios do seu passado. O autor escreveu algumas obras catalogadas por ele, presumo, como sátiras sociais. Também escreveu um estudo patológico, imagino que seja um romance naturalista, onde ficcionará um qualquer carácter mórbido, neste caso de uma mulher, pois a obra tem nome de mulher. Consta que tinha inclinações políticas doentias, não muito diferentes das do grande Knut Hamsun, mas, por certo, faltar-lhe-á o génio deste. Não se pode ter tudo, apesar de ter um título, daqueles que Almeida Garrett dizia: Foge, cão, que te fazem barão. Ao que o pobre animal respondia: Para onde, se me fazem Visconde? Não quer este narrador fazer espúrias comparações, pois é distante o talento de um e outro, mas está ele, o narrador, quase como Vitorino Nemésio no programa televisivo Se bem me lembro. Começava a falar em alhos e acabava em bugalhos, num exercício estilístico onde imperava a corrente de consciência, coisa que parece ter tido a sua origem literária no Hamsun, já aqui aludido, e teve em Joyce um dos grandes cultores. Eu também me entrego à corrente de consciência, não porque queira ficcionar o que se passa na minha mente, mas porque tenho uma percepção deslassada do mundo. Não se pense que uma coisa deslassada não tem importância. Ainda ontem, por aqui, um bolo deslassou, o que foi acolhido com grande consternação e não menos pesar. Descobriu-se, depois, que houvera uma troca de um dos produtos, efeito de uma confusão no momento da compra. Aventou-se que seria uma estratégia comercial para escoar certas mercadorias, mas concluiu-se, de modo prosaico, que fora apenas a falta de óculos. Este é o meu requiem pelo mês de Agosto.

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