sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Pluralismo sensorial

Deixei-me embalar por uma peça de Arvo Pärt, Für Alina, e adormeci sentado defronte ao computador. Como lidar com estas humilhações? O melhor é não lidar e aceitar as coisas como são e, neste caso, recomeçar a ouvir a peça, a qual, diga-se, tem qualquer coisa de embalador. Talvez fosse um exercício de hipnose. Nunca se sabe o que vai na cabeça de um artista. Talvez a cabeça não seja um órgão artístico. Será mais propícia ao filósofo e ao cientista. Também não será o coração. Se a cabeça suporta o filósofo e o cientista, se o coração suporta o homem religioso, o que suportará o artista? Os sentidos. Os artistas pensam com os sentidos, enquanto o monge pensa com o coração e o filósofo e o cientista com a cabeça. Ora o artista tem a primazia, pois enquanto os outros têm ao seu dispor apenas um órgão de pensamento, a cabeça ou o coração, o artista tem cinco. É verdade que há uma especialização. Artes visuais, artes auditivas. Artes tácteis, já menos habituais. Depois, talvez fosse melhor falar em artesanato olfactivo e gustativo. Seja como for, o artista, mesmo que o seu produto se concentre num dos sentidos, parte da pluralidade sensorial. Do monismo da razão, do monismo do amor, passa-se ao pluralismo da sensação. E será este pluralismo primordial que acaba por tornar a arte a mais enigmática das actividades humanas. Hegel pensava que o Absoluto se manifestara primeiro na arte grega, depois na religião cristã e encontrava o seu elemento na filosofia, isto é, na filosofia dele, Hegel. Ora, o conceito, mesmo que dialéctico, é uma abstracção. Só a arte, no seu pluralismo, manifesta a vida desse absoluto. Como se vê, adormecer diante do computador não é coisa recomendável. Uma pessoa acorda com a cabeça cheia de pensamentos sem préstimo e sem sentido, o que é ainda pior.

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