terça-feira, 22 de outubro de 2024

Instabilidades

Como ontem, o dia de hoje tem uma luz vibrante. O céu, de um azul-pálido, é sulcado por pequenas nuvens de uma cinza esbranquiçada. Formam uma frota dispersa, em fuga, depois de uma derrota em alto-mar. Quase se ouvem os gemidos dos marinheiros moribundos, mas será apenas a imaginação de um narrador sem ocupação. Talvez o bom tempo tenha vindo para ficar. Se assim for, chegará a hora em que se ouvirão lamentos pela falta de água, pelas terras secas, pelas culturas perdidas. Nenhuma novidade. A questão da novidade é interessante, talvez mais do que se pensa. Se pensarmos que tudo o que acontece é único e irrepetível, que nenhum momento é idêntico a outro, chegaremos, de imediato, à conclusão de que tudo o que acontece é novidade. Ora, a ideia que transportamos de novidade está fundada na oposição entre o velho e o novo. Ora, se tudo é constantemente novo, então não há lugar para o jogo de oposição entre velho e novo e, como corolário, não há qualquer novidade. Os móveis velhos daquela sala são, na verdade, continuamente novos, pois a cada instante que passa eles tornam-se outros, numa alteração contínua e sem fim. Eu, narrador deste instante, não sou o narrador que começou o texto, pois a escrita de cada letra me fez ser outro, por muito que eu afirme que sou o mesmo, que sou o velho narrador de há pouco ou de há dez anos. O problema é que não sabemos como lidar com o fluxo da diferenciação e consideramos como iguais coisas – isto é, tudo o que existe – que, constantemente, se tornam diferentes. Confundimos a nossa necessidade psicológica de estabilidade das referências com o facto de as coisas serem estáveis. Não são. Nós também não.

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