Devaneei, de carro e apressadamente, por algumas ruas da
cidade. Tudo me pareceu mais limpo, mas pode ser apenas sugestão trazida pelas
bátegas de água. Agora estou em casa e olho pela janela. Ao longe, as muralhas
do castelo, por instantes, reverberam. O vento inclina as copas das árvores, o
sol brilha enquanto as nuvens não o cobrem, um carro estaciona nos muitos
lugares vagos trazidos pelo fim-de-semana. É domingo e as famílias, algumas, terão
ido à missa e reúnem-se para celebrar a sua eucaristia privada. Um cão alçou a
perna junto a um tronco de árvore, depois baixou-a e seguiu caminho farejando. Folhas
caídas e restos de plásticos enrolam-se no vento, elevam-se nos ares e, como
sempre acontece, caem. As palavras servem para isto, para quebrar aquilo que o
silêncio deveria calcinar, mas que a imprudência dos mortais acaba por
transformar em tagarelice.
domingo, 11 de março de 2018
sábado, 10 de março de 2018
Sábados de província
Fui almoçar ao Arripiado, do outro lado do Tejo. Estamos, na região ribeirinha aqui mesmo ao lado, na altura da lampreia e do sável. A lampreia, confesso, nunca me convenceu. As pessoas dizem que ou se ama ou se odeia, mas o que as pessoas dizem o vento o leva. Nem amor nem ódio, passo bem sem ela, mas se tiver de ser, não volto as costas. Por falar em lampreia, lembrei-me do romance A Saga/Fuga de JB, do galego Torrente Ballester. Fala-se nele, tanto quanto a memória me permite recordar, de lampreias e da relação directa entre a sua qualidade culinária e o suicídio por afogamento. Ano em que o rio não acolha o seu suicida a lampreia não é grande coisa. A idade faz-nos estas partidas, começamos uma conversa e, não tarda, entramos em roda livre e falamos do que vem à cabeça. A ida ao Arripiado, a um restaurantezinho de aldeia com vista para o Tejo, deve-se ao culto do sável. A cada um os seus prazeres, os meus são parcos. Depois do sável, um retorno por Constância, onde temo sempre ter de me encontrar com Camões, embora a sensatez do poeta tenha, até agora, evitado o incidente. E chegado ali, fiquei a olhar o Tejo e o Zêzere, este a derramar-se naquele, eu a recordar inundações, as águas ainda vão baixas, disse, e a ver a vida correr. Heraclito, sentado na outra margem, fazia-me sinal, mas eu, que estava acompanhado, fiz-me desentendido. São assim os sábados na província, quando chove.
sexta-feira, 9 de março de 2018
Registo
Os carros deslizam pela Sá Carneiro, como se estivessem
apressados, temerosos de chegar tarde ao fim-de-semana. Por vezes, algum
encontra um lugar de estacionamento e pára. De lá de dentro, sai um homem
apressado e corre para um dos bancos. Uma trupe de adolescentes passa, perdida
na algazarra, confiante na sua imortalidade e logo desaparece. O pior são as
bátegas de água. As pessoas protegem-se ou, irritadas, abrem chapéus. Logo o
vento sopra, e inclina-os. Mesmo à minha frente, um virou-se, deixando ver as
varetas frágeis que seguram o tecido sintético multicolor. Os prédios, presos
na sua solidez de aço e betão, olham com indiferença a azáfama dos mortais. E
os meus olhos registam tudo isto – o carro que agora passa descuidado molhando
alguém – para que o possa contar, como se a minha missão fosse arrolar tudo o
que é inútil. Os cedros da escola em frente abanam, tocados pelo vento que a
sexta-feira despeja na cinza da tarde.
quinta-feira, 8 de março de 2018
Realidades
Basta, por vezes, uma troca de palavras com alguém para percebermos
que o mundo está muito longe daquilo que imaginamos. Sob os nossos olhos,
desenrolam-se as coisas mais inusitadas. Não se tratam sequer de mistérios
metafísicos mas de realidades vividas, existências sólidas. Mesmo em pessoas
com propensão para um certo cepticismo sobre o mundo, pensei no fim da
conversa, há um excesso de idealização. A realidade é sempre pior do que
imaginamos. O que vale é que vida continua exuberante, indiferente ao nosso
idealismo e às nossas desilusões. As coisas são o que são. Não há nada como uma
redundância para fim de conversa.
quarta-feira, 7 de março de 2018
Chuva fria
Depois de uma pequena cerimónia,
saí da escola sob chuva fria, a água a deslizar no pára-brisas, enquanto as
pessoas se escondiam dentro de casa. Nestes dias, a cidade parece-me menos
irreal. O tempo invernoso, penso-o muitas vezes, é o tempo da verdade. Os
grandes dias de calor são uma antecipação do inferno, no qual já ninguém
acredita, e os amenos não conseguem esconder a doce ilusão que os habita. Os
dias frios e chuvosos colocam-nos perante a nossa condição de seres abandonados
sobre a terra. E isso chega. Claro que há sempre quem tenha qualquer coisa para
vender. Uma ideia original, a salvação da pátria, um mundo melhor. Não tenho
alma de comerciante nem inclinação para o consumo. Olho as muralhas do castelo
e sigo o caminho. Basta-me a chuva fria.
terça-feira, 6 de março de 2018
Constrangimento
Hoje fui a uma pastelaria onde não entrava há muito. Antes
de ir tratar de um assunto levemente desagradável, senti que comer uma bola de Berlim
não traria mal ao mundo. Deparei-me com antigas professoras, que, calmamente,
lanchavam. Todas foram minhas colegas e duas delas deram-me aulas quase há cinquenta
anos. A passagem dos anos não ajuda ninguém, pensei, e, ao olhar para elas, vi
o tempo, com as suas garras inoxidáveis, deslizar sobre mim. O brilho que um
dia as animou, que as fez suportar essa estranha profissão de dar de beber a
quem não tem sede e de comer a quem não tem fome, esconde-se agora sob uma
névoa de indiferença, onde, para dizer a verdade, não há traço de tristeza ou de
alegria. Constrangido troquei algumas palavras amáveis e rápidas. Satisfeita a
gula, esperava-me o frio da rua e o tal assunto levemente desagradável, também
ele motivado pelo passar do tempo. Um dia, se chegar lá, olharão
constrangidos para mim, pensei.
segunda-feira, 5 de março de 2018
Colégio de Santa Maria
Sempre que passo por lá, e faço-o várias vezes por dia, há
uma sombra de tristeza a pairar sobre aquele lugar. Não é que esteja abandonado
e a ruína seja o horizonte próximo. Pelo contrário, está bem conservado, apesar
das alterações inóspitas que a sua fachada sofreu. Houve ali uma vida
exuberante, sonhos, uns fundados na terra da realidade, outros mais
tresloucados. Hoje tudo isso é uma sombra que se desvaneceu na voragem dos
dias. O antigo Colégio de Santa Maria é, mas confesso que não tenho bem a certeza,
um lar de repouso de freiras. Manteve a fidelidade ao feminino, mas há muito
que não há por ali raparigas de bata azul, carregadas de livros e de ilusões.
Agora floresce a indiferença de quem passa ou a melancolia de quem cresceu num
mundo que o mundo aniquilou. Olho a rua e o vento sopra, levando com ele folhas
mortas, papéis inúteis, restos de plástico, memórias feitas de flocos de nuvens
e o tecido inútil de tudo o que passou.
domingo, 4 de março de 2018
Leituras
A chuva sossegou, mas o dia continua preso à cinza com que
as nuvens o cobrem. Não saio de casa e aproveito para ir adiantando algumas
leituras entre mãos. Estas leituras, na verdade, não me servem para nada.
Aquilo que preciso para o exercício da minha profissão é, por escandaloso que
pareça, bem mais rudimentar. Muita gente faz o mesmo que eu, porventura melhor,
sem ter sequer leituras. Alguém poderá supor que ler tem em si um valor
intrínseco. Em tempos, depois de uma fase de crente, tornei-me agnóstico relativamente
a esta proposição. Hoje sou ateu. Nenhuma leitura tem valor intrínseco. Pessoas
com boas intenções dirão: ler ajuda a compreender o mundo. Também aqui a minha
propensão, depois de passar os sessenta, é de transitar do agnosticismo para o
ateísmo. Resta ler por prazer. Sim, é uma hipótese. Outra será ler porque não
se sabe fazer outra coisa. Aliás nem constituem um dilema. A incompetência e o
prazer andam de mãos dadas muitas vezes. Aqui e ali, a muralha de nuvens abre
pequenas brechas por onde escorre uma luz viva e se avistam farrapos azuis do
céu. O tempo passa, o melhor será mesmo pegar no livro.
sábado, 3 de março de 2018
Deveres
Talvez se devesse, aos sábados pela manhã, ao acordar,
recitar como uma oração o poema de Fernando Pessoa que começa com os inusitados
versos Ai que prazer / Não cumprir um
dever. O problema é que nunca sabemos a que deus devemos dirigir a prece.
Os deuses, mesmo os mais condescendentes, são zelosos em matéria de dever e,
raramente, atendem tais súplicas. Não se impressionam nem com a luz de uma vela,
mesmo eléctrica. Noutros tempos, uma hecatombe movia-lhes o coração. Mas que
mortal devedor de deveres tem cem bois para o sacrifício. E assim, enquanto a
chuva se entrega à vertigem da queda, entrego-me aos deveres que devoram o
tempo. Mais que isto, lembra o poeta,
É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca… Era sábio esse Cristo, mas o que
se poderia esperar do filho de Deus? Que lesse Aristóteles, que ensinasse
economia, que escrevesse um tratado de finanças? Um pombo passa diante da minha
janela e poisa no telhado da frente. Será o Espírito Santo? Também Ele há-de
ter os seus deveres.
sexta-feira, 2 de março de 2018
Homofonias
É um problema de homofonia. E com o passar dos anos a patologia
tende a agravar-se. Ontem, por exemplo, depois de discorrer sobre a vexata quaestio das persianas e das
minhas deambulações por esta cidade que, em seu seio, me acolhe, acabei por
desconcertar, e aqui é mesmo desconcertar, o texto escrevendo “concertadas” no
lugar de “consertadas”. O que me valeu foi uma alma amiga que há pouco me fez
notar a situação. Não é que não possa haver um concerto para persianas e viola
da gamba ou um quinteto de cordas e persianas. Pode, mas não com as minhas
persianas, as quais não foram preparadas para o efeito. Limitam-se a subir e a
descer, isto quando não entram em greve, como é o caso. Tudo isto para dizer
que um erro é um erro, mesmo que a culpa esteja na homofonia e na desatenção de
quem escreve. Se fosse dado a angústias, o que não sou, diria que o que me
angustie é a possibilidade que o conflito com a homofonia aumente e que novos
desarranjos floresçam. O que hei-de eu fazer?
quinta-feira, 1 de março de 2018
Conservação
Devido a um problema com persianas tive de fazer, para acertar
a visita de um técnico, um trajecto diferente para casa. Cheguei a uma altura
na vida em que qualquer alteração aos hábitos se torna penosa. Embora, a
verdade seja dita, esta inclinação para o conservadorismo seja coisa antiga. E
foi isso que me entreteve no caminho, enquanto os olhos iam absorvendo a
melancolia que se desprende de tudo nesta pequena cidade. Talvez essa
melancolia se deva à inclinação conservadora, a qual gera uma incompreensão
para muito do que se passa por aqui. A minha esperança, ponderei, reside nos
castanheiros da avenida, quando chegar a hora sumptuosa da floração. Serão
ainda algumas semanas de pura irrealidade. A pujança das árvores, as cores das
pétalas, o rio e, sobre tudo isso, as muralhas do castelo, elas que já viram de
tudo, a espiar a vida pobre que sob as suas pedras se desenrola. Talvez para a
semana tenha as persianas consertadas, pensei. Não há nada como conservar as
coisas.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Beco sem saída
Quando hoje passei pela ponte do Raro e olhei as águas
lembrei-me de uma velha canção de Simon & Garfunkel, Bridge Over Troubled Waters. Uma lembrança a despropósito, como me
acontece com frequência. Nem a minha disposição é de andar a distribuir
consolo, nem as águas do rio, do rio da minha aldeia, quase o digo, sonham
sequer em ser turbulentas. Estas súbitas aparições do passado não deixam de ser
misteriosas. Seguimo-las e não deixamos de ir dar a becos sem saída. Quantas
vezes passei por aquela ponte? Quantas vezes, num tempo tão distante, terei
ouvido aquela canção? E tudo o que me motivou num e noutro caso tornou-se tão
obscuro que sinto crescer dentro de mim uma dúvida sobre se alguma vez
atravessei a ponte ou ouvi a canção. E assim lançada, a minha mente já se
precipitava para uma meditação metafísica sobre a irrealidade da existência. O
que me valeu foi o semáforo ter aberto. A salvação está em qualquer lado, até
num semáforo perdido numa cidade que, também ela, parece um beco sem saída.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Falar do tempo
Adiar o inadiável, pensei ao ver a chuva cair. Não tarda e a
Primavera chega com o seu cortejo de ilusões, os corpos tomados por uma ânsia
de Verão e eu, temeroso, sinto já a penumbra fumegante com que o calor me
envolve e me lembra, com o estilete do acinte a enterrar-se nas veias, a finitude
e a mortalidade que me constituem. Falar do tempo, penso, é aquilo que cabe a
quem já não tem nada para dizer. Aos negócios humanos sou cada vez mais
estranho e do resto nada sei. Quando não sou capaz de estar calado, sobra-me o
tempo como motivo de conversa. Descrever os dias de chuva, os de sol e os que
não são uma coisa nem outra. Ah se tivesse uma libertação para proclamar ou uma
salvação para anunciar, tudo seria mais fácil. Nunca faltam adeptos, mas como
verdade basta-me a chuva que cai, o sol que brilha, as nuvens que passam, a
monotonia com que a noite se ergue do ventre entumecido do dia. Chove, não é
mau.
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Anjos
Só se ouve um piano, mas o título da peça é “Três anjos
cantavam”. Os meus ouvidos não estão preparados para escutar as vozes dos
anjos, pensei, enquanto deixava o espírito enovelar-se nos acordes musicais.
Talvez o título seja uma metáfora ou uma falsa promessa. Promete vozes de anjos
e escutamos um piano. Também a tarde de hoje é feita de falsas promessas, presumo.
O céu cinzento anuncia chuva, mas ela recusa-se a cair. Olho para a rua e os
transeuntes caminham despreocupados, presos aos seus sonhos, mãos vazias como
se soubessem que a água prometida é uma conjectura sem sentido. Volto para a
voz dos anjos e oiço as notas saídas do piano. Talvez essa voz não seja mais
que o silêncio, esse silêncio que abre o corpo do homem ao segredo da música. Observo
inquieto a rua e ainda não chove. Um anjo poisa no telhado em frente, quase se
desequilibra. Recolhe as asas e canta.
domingo, 25 de fevereiro de 2018
Memória
Temos uma certa crença fundada em experiências antigas – por
exemplo, o caminho que liga duas povoações e que foi percorrido inúmeras vezes
nos anos setenta do século passado – e estamos certos dessa crença. A certa
altura passa-se, dizemos ufanos a quem nos acompanha, por aqui e por ali. Depois,
descobre-se que não se passa nem por aqui nem por ali e ficamos perplexos sem
saber se já não se passa ou se nunca se passou. A memória é um poder estranho e
pouco confiável. Quando pensamos que ela reproduz uma realidade vivida, ela
logo nos mostra que a sua função é inventar vidas que nunca existiram, caminhos
que nunca foram percorridos ou acontecimentos que nunca aconteceram. Ou talvez
tudo isto seja uma história dominical, onde os caminhos do fim-de-semana não
coincidem, por respeito ao ócio, com os dos dias úteis, subjugados que estão à
corveia que a existência nos impõe.
sábado, 24 de fevereiro de 2018
Vida examinada
Os dias ensolarados de Fevereiro arrastam consigo a triste
propensão de nos darem a pensar aquilo que deveríamos não trazer à memória. Algumas
contabilidades esquivas têm tendência, se nos descuidamos, a colocar-nos
perante o número de anos já vividos. O pior do exercício não será tanto a
compreensão da cada vez mais próxima falência do projecto, com o encerramento
definitivo da aventura. A falência é a contrapartida necessária e incondicional
de as portas terem sido abertas. O pior é aquela linguagem cifrada em livro
razão, balanço, deve e haver. Toda a vida é vista, então, como um acumular de
entradas e saídas, a que o exercício esotérico da contabilidade parece ser
chamado a examinar. Consta que Sócrates, o mestre de Platão, terá dito que uma
vida não examinada não merecer ser vivida. E o anjo negro, aquele que também
habita dentro de nós ao lado do anjo branco, pergunta: e uma vida examinada
será que merece? O melhor é ir apanhar sol e ver se falta muito para os
castanheiros da avenida florescerem.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
Precaução
Não há pior tentação, pensei ao entrar no carro para me
dirigir para casa, que a de tentar corrigir a natureza humana. Quando a ideia nos
toma de assalto, a única coisa que devemos fazer é esperar com paciência que
ela passe. O importante, meditei, não é melhorar a humanidade, mas precavermo-nos
dela, mesmo – ou principalmente – se entre ela e nós não há qualquer diferença.
O sol de sexta-feira tem sempre o condão de me fazer pensar sobre coisas em que
não devia pensar.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
Cegueira
Penso muitas vezes na inevitabilidade das coisas e na
estranha cegueira que cai sobre os mortais. Não estou a falar daquilo que
acontece necessariamente devido a uma lei qualquer da natureza. Refiro-me ao
que poderia não acontecer – e que, muitas vezes, seria desejável que não
acontecesse – mas que acabará por acontecer. Há um momento em que isso poderia
ser evitado, mas a cegueira para o que pode vir é tanta que, quando tudo se
torna manifesto, já é tarde para o evitar. Os que se riam da mera possibilidade
são os primeiros a chorar, como se eles não fossem, por omissão, uma causa do
estado lamentoso a que se chegou. Os deuses são travessos e raramente perdem
oportunidade para se rirem das lágrimas dos homens.
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018
Mortais
O tempo é faceto ou, talvez, volúvel. Ainda ontem prometia,
sem pudor, o devir rápido de uma primavera temporã. Hoje, arrependido e tristonho,
enovela-se em sombras, deixando vir uma luz equívoca que, dificilmente,
alegrará o coração daqueles que, soturnos, vejo calcorrear a avenida. A
tonalidade cinzenta da hora parece chumbo que os meus conterrâneos carregam
sobre as suas costas. Cada um, pensei então, é uma encarnação do filho de
Jápeto, o infeliz que foi condenado a suportar, em seus ombros, os céus. Não há
como a mitologia para enquadrar as coisas da vida. O pior, ocorreu-me logo, é a
impossibilidade de ver neles a sombra de velhos titãs conjurados contra um
poder supremo. Sob a copa das árvores passam apenas mortais conciliados com o
seu destino. Antes assim, conformei-me eu também.
domingo, 18 de fevereiro de 2018
Antevisões
Esta luz faz lembrar já os arpejos da Primavera, pensei.
Logo, uma onda de calor desceu sobre mim numa antevisão do que virá. O problema
todo está nesta maldita Idade de Ferro que nos foi dada a viver. Como o velho Ovídio
explica – e outros antes dele – na primeira Idade, a de Ouro, a Primavera era
eterna, mas tendo sido devorado esse tempo, com a passagem à Idade de Prata, as
estações foram divididas e a Primavera, antes infindável, é agora breve e logo
cede o seu reino ao tormentoso Estio. E com esta recordação os raios solares
que descem sobre a avenida em vez de consolo são já uma ameaça tórrida a que
ninguém, contudo, presta atenção, entregues que os homens estão à celebração da
glória luminosa do sol. Recolho-me em casa e tento lembrar-me dessa outra
pátria que haveria de ser a minha se a ordem do frio e do calor, da luz e da
sombra coincidisse com o meu desejo. E em mim não há mapa onde a encontre nem
voz que a sopre aos meus ouvidos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)