“De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar”.
Assim começa Ovídio as suas Metamorfoses.
Vê-se logo que entrei de fim-de-semana. Ora estas metamorfoses são coisas mais
importantes do que se pensa. Veja-se o caso de Saulo de Tarso, agora conhecido
por S. Paulo. Não fora a súbita metamorfose sofrida por ele na estrada de
Damasco e hoje não haveria cristianismo ou, se houvesse, seria outra coisa,
talvez menos preocupada com o sexo. Também eu, por vezes, sofro uma
metamorfose, não tão dramática quanto a de Paulo, mas também não me ponho a
caminho de Damasco. Limito-me a passar pelas ruas de Torres Novas. Durante
décadas odiei, com determinação, favas. O cheiro deixava-me nauseado. Como em todos
os ódios, também neste o que sobrava em fervor faltava em racionalidade. Há uns
tempos, nem sei bem porquê nem aonde, tive uma metamorfose. Hoje foram, não sem
grande prazer, o meu almoço. A cada um as suas iluminações.
sexta-feira, 16 de março de 2018
quinta-feira, 15 de março de 2018
Aguaceiros
Os dias incertos do final do Inverno repercutem-se na
indecisão que alastra nos passos dos transeuntes. Não sabem se o seu caminho é
o do sol ou se, daqui a instantes, a água derramar-se-á das nuvens como se a
arca de Noé estivesse pronta e um dilúvio viesse purificar a terra da maldade
humana. Caminho de chapéu de chuva na mão, mas espero que o sol me poupe a um
aguaceiro. A cidade ronrona e furtiva escapa-se-me dos olhos. Passos por
pessoas que cumprimento, mas não consigo já localizar o nome de algumas. A
folhagem da memória é precária e caduca, torna-se pó com excessiva facilidade. À
rua onde passo deram-lhe o nome da revolução, mas nela tudo é sossego e
indiferença, uma ordem sem a cegueira delirante da exaltação. Por ali, apenas
um tribunal, uma farmácia, mais acima, escolas. Nada que lembre a branca
obscuridade do entusiasmo e da fantasia. Os dias são como a vida na província,
passam devagar, mas o tempo, esse corre desalvorado e sem tino, ansioso a todos
entregar, sem demora, à tranquilidade do ataúde. O melhor é abrir o chapéu, uns
pingos grossos anunciam a bátega infernal que há-de vir.
quarta-feira, 14 de março de 2018
Vontade
Chove. O vento inclina as copas das árvores, fá-las desenhar
figuras bizarras, para depois as deixar sonâmbulas, muito aprumadas, ramos a
apontar para o céu. Os campos de jogos da escola em frente estão cobertos por
lençóis de água. Não se avista, da minha secretária, vivalma. Vejo as notícias –
ah essa oração da manhã do homem moderno que ainda não dispenso – e deparo-me
com o anúncio da morte de Stephen Hawking, o físico britânico. Fico a olhar
para a rua e a pensar no que foi a sua vida. Na verdade, muitos dos problemas
dos homens residem na vontade fraca. Ele que deveria ter morrido há quase meio
século viveu em circunstâncias físicas excepcionalmente difíceis e é uma das
grandes figuras do século XX e inícios do XXI. Sim, ele teria uma inteligência
prodigiosa, mas sem uma vontade de ferro nunca o seu nome teria chegado a nós.
Ao olhar os seus dados biográficos, descubro que escolheu bem os dias para
nascer e morrer. Nasceu no dia em que, trezentos anos antes, morrera Galileu
Galilei e morreu no dia em que, cento e trinta nove anos antes, nascera Albert
Einstein. Para completar o quadro, pensei, só falta uma coincidência com Isaac
Newton. A chuva rumoreja e o dia enovela-se numa cinza triste. Indiferentes a
tudo isto, algumas oliveiras permanecem impávidas, como se soubessem de coisas
que nunca imaginaremos.
terça-feira, 13 de março de 2018
Palavrões
Fui à farmácia comprar um
medicamento que me há-de fazer bem à hipertensão arterial. Um exercício
contumaz que evitará, presumo esperançoso, que a tensão se entregue ao devaneio
da hipérbole. Animado pela perspectiva, saio e, em plena avenida, passa um
bando de pré-adolescentes. Raparigas e, perdido entre elas, um rapaz. Talvez
inconsolado pela sua solidão de género, desdobra-se, em altos berros, em
palavrões. Em busca da masculinidade, pensei, ou talvez fique mais aliviado e esteja
a prevenir alguma doença do fígado. As pessoas passavam, os homens sorridentes,
as mulheres de orelhas moucas. Se tivesse a certeza de que uns palavrões eram,
para a hipertensão, mais eficazes que um beta bloqueante, acho que também eu
desatava a bradar avenida fora. Duvido, porém, da eficácia da metáfora e segui para
casa.
segunda-feira, 12 de março de 2018
A repartição
Um repartição pública tem um ritmo muito próprio e, se
observado com atenção, muito regulado. Num tempo em que a sociedade e a
natureza se desregulam, há um nicho onde, apesar do aparato das tecnologias de
informação e da parafernália dos periféricos, a regularidade se impõe do abrir
ao fechar das portas. Contrariamente ao que se pode imaginar, a regularidade
pública não é sinónimo de lentidão. Quando hoje, por um daqueles afazeres a que
qualquer cidadão tem de se submeter, entrei numa dessas repartições e, depois de
tirar a senha, pensei que, com o pouco tempo disponível, o melhor seria ir-me
embora. A sala cheirava a mofo e tudo parecia tão lento que, com mais tempo,
num outro dia haveria de tratar do que ali me levara. Talvez algum anjo me
tivesse soprado ao ouvido, mas acabei por ficar por ali a observar a cadência
com que os séculos XVIII e XIX se arrastam em pleno século XXI. Imaginei-me
numa daquelas repartições por onde correu o processo que conduziu Joseph K. à
morte. A imaginação, porém, não é uma faculdade assisada e não hesita em
derramar fantasias e quimeras, quando não calúnias e vitupérios, no espírito do
incauto que a transporta. O mofo não tem a ver com a claustrofobia da
modernidade, constatei, mas apenas com a humidade e o excesso de pessoas, todas
apostadas em não deixar de respirar, num espaço pequeno. E meditando nisto ia
observando o ritmo com que tudo se desenrolava. Quando saí, de assunto tratado,
tinha passado uma escassa meia-hora, ritmada por um saber feito de séculos, num
Estado que encontrou há muito a sua cadência que, só na aparência, não coincide
com a nossa. Cheguei à rua e o sol brilhava e os raios reverberavam nos
passeios molhados. Meia hora, quem diria? E assim fui à minha vida.
domingo, 11 de março de 2018
Tagarelice
Devaneei, de carro e apressadamente, por algumas ruas da
cidade. Tudo me pareceu mais limpo, mas pode ser apenas sugestão trazida pelas
bátegas de água. Agora estou em casa e olho pela janela. Ao longe, as muralhas
do castelo, por instantes, reverberam. O vento inclina as copas das árvores, o
sol brilha enquanto as nuvens não o cobrem, um carro estaciona nos muitos
lugares vagos trazidos pelo fim-de-semana. É domingo e as famílias, algumas, terão
ido à missa e reúnem-se para celebrar a sua eucaristia privada. Um cão alçou a
perna junto a um tronco de árvore, depois baixou-a e seguiu caminho farejando. Folhas
caídas e restos de plásticos enrolam-se no vento, elevam-se nos ares e, como
sempre acontece, caem. As palavras servem para isto, para quebrar aquilo que o
silêncio deveria calcinar, mas que a imprudência dos mortais acaba por
transformar em tagarelice.
sábado, 10 de março de 2018
Sábados de província
Fui almoçar ao Arripiado, do outro lado do Tejo. Estamos, na região ribeirinha aqui mesmo ao lado, na altura da lampreia e do sável. A lampreia, confesso, nunca me convenceu. As pessoas dizem que ou se ama ou se odeia, mas o que as pessoas dizem o vento o leva. Nem amor nem ódio, passo bem sem ela, mas se tiver de ser, não volto as costas. Por falar em lampreia, lembrei-me do romance A Saga/Fuga de JB, do galego Torrente Ballester. Fala-se nele, tanto quanto a memória me permite recordar, de lampreias e da relação directa entre a sua qualidade culinária e o suicídio por afogamento. Ano em que o rio não acolha o seu suicida a lampreia não é grande coisa. A idade faz-nos estas partidas, começamos uma conversa e, não tarda, entramos em roda livre e falamos do que vem à cabeça. A ida ao Arripiado, a um restaurantezinho de aldeia com vista para o Tejo, deve-se ao culto do sável. A cada um os seus prazeres, os meus são parcos. Depois do sável, um retorno por Constância, onde temo sempre ter de me encontrar com Camões, embora a sensatez do poeta tenha, até agora, evitado o incidente. E chegado ali, fiquei a olhar o Tejo e o Zêzere, este a derramar-se naquele, eu a recordar inundações, as águas ainda vão baixas, disse, e a ver a vida correr. Heraclito, sentado na outra margem, fazia-me sinal, mas eu, que estava acompanhado, fiz-me desentendido. São assim os sábados na província, quando chove.
sexta-feira, 9 de março de 2018
Registo
Os carros deslizam pela Sá Carneiro, como se estivessem
apressados, temerosos de chegar tarde ao fim-de-semana. Por vezes, algum
encontra um lugar de estacionamento e pára. De lá de dentro, sai um homem
apressado e corre para um dos bancos. Uma trupe de adolescentes passa, perdida
na algazarra, confiante na sua imortalidade e logo desaparece. O pior são as
bátegas de água. As pessoas protegem-se ou, irritadas, abrem chapéus. Logo o
vento sopra, e inclina-os. Mesmo à minha frente, um virou-se, deixando ver as
varetas frágeis que seguram o tecido sintético multicolor. Os prédios, presos
na sua solidez de aço e betão, olham com indiferença a azáfama dos mortais. E
os meus olhos registam tudo isto – o carro que agora passa descuidado molhando
alguém – para que o possa contar, como se a minha missão fosse arrolar tudo o
que é inútil. Os cedros da escola em frente abanam, tocados pelo vento que a
sexta-feira despeja na cinza da tarde.
quinta-feira, 8 de março de 2018
Realidades
Basta, por vezes, uma troca de palavras com alguém para percebermos
que o mundo está muito longe daquilo que imaginamos. Sob os nossos olhos,
desenrolam-se as coisas mais inusitadas. Não se tratam sequer de mistérios
metafísicos mas de realidades vividas, existências sólidas. Mesmo em pessoas
com propensão para um certo cepticismo sobre o mundo, pensei no fim da
conversa, há um excesso de idealização. A realidade é sempre pior do que
imaginamos. O que vale é que vida continua exuberante, indiferente ao nosso
idealismo e às nossas desilusões. As coisas são o que são. Não há nada como uma
redundância para fim de conversa.
quarta-feira, 7 de março de 2018
Chuva fria
Depois de uma pequena cerimónia,
saí da escola sob chuva fria, a água a deslizar no pára-brisas, enquanto as
pessoas se escondiam dentro de casa. Nestes dias, a cidade parece-me menos
irreal. O tempo invernoso, penso-o muitas vezes, é o tempo da verdade. Os
grandes dias de calor são uma antecipação do inferno, no qual já ninguém
acredita, e os amenos não conseguem esconder a doce ilusão que os habita. Os
dias frios e chuvosos colocam-nos perante a nossa condição de seres abandonados
sobre a terra. E isso chega. Claro que há sempre quem tenha qualquer coisa para
vender. Uma ideia original, a salvação da pátria, um mundo melhor. Não tenho
alma de comerciante nem inclinação para o consumo. Olho as muralhas do castelo
e sigo o caminho. Basta-me a chuva fria.
terça-feira, 6 de março de 2018
Constrangimento
Hoje fui a uma pastelaria onde não entrava há muito. Antes
de ir tratar de um assunto levemente desagradável, senti que comer uma bola de Berlim
não traria mal ao mundo. Deparei-me com antigas professoras, que, calmamente,
lanchavam. Todas foram minhas colegas e duas delas deram-me aulas quase há cinquenta
anos. A passagem dos anos não ajuda ninguém, pensei, e, ao olhar para elas, vi
o tempo, com as suas garras inoxidáveis, deslizar sobre mim. O brilho que um
dia as animou, que as fez suportar essa estranha profissão de dar de beber a
quem não tem sede e de comer a quem não tem fome, esconde-se agora sob uma
névoa de indiferença, onde, para dizer a verdade, não há traço de tristeza ou de
alegria. Constrangido troquei algumas palavras amáveis e rápidas. Satisfeita a
gula, esperava-me o frio da rua e o tal assunto levemente desagradável, também
ele motivado pelo passar do tempo. Um dia, se chegar lá, olharão
constrangidos para mim, pensei.
segunda-feira, 5 de março de 2018
Colégio de Santa Maria
Sempre que passo por lá, e faço-o várias vezes por dia, há
uma sombra de tristeza a pairar sobre aquele lugar. Não é que esteja abandonado
e a ruína seja o horizonte próximo. Pelo contrário, está bem conservado, apesar
das alterações inóspitas que a sua fachada sofreu. Houve ali uma vida
exuberante, sonhos, uns fundados na terra da realidade, outros mais
tresloucados. Hoje tudo isso é uma sombra que se desvaneceu na voragem dos
dias. O antigo Colégio de Santa Maria é, mas confesso que não tenho bem a certeza,
um lar de repouso de freiras. Manteve a fidelidade ao feminino, mas há muito
que não há por ali raparigas de bata azul, carregadas de livros e de ilusões.
Agora floresce a indiferença de quem passa ou a melancolia de quem cresceu num
mundo que o mundo aniquilou. Olho a rua e o vento sopra, levando com ele folhas
mortas, papéis inúteis, restos de plástico, memórias feitas de flocos de nuvens
e o tecido inútil de tudo o que passou.
domingo, 4 de março de 2018
Leituras
A chuva sossegou, mas o dia continua preso à cinza com que
as nuvens o cobrem. Não saio de casa e aproveito para ir adiantando algumas
leituras entre mãos. Estas leituras, na verdade, não me servem para nada.
Aquilo que preciso para o exercício da minha profissão é, por escandaloso que
pareça, bem mais rudimentar. Muita gente faz o mesmo que eu, porventura melhor,
sem ter sequer leituras. Alguém poderá supor que ler tem em si um valor
intrínseco. Em tempos, depois de uma fase de crente, tornei-me agnóstico relativamente
a esta proposição. Hoje sou ateu. Nenhuma leitura tem valor intrínseco. Pessoas
com boas intenções dirão: ler ajuda a compreender o mundo. Também aqui a minha
propensão, depois de passar os sessenta, é de transitar do agnosticismo para o
ateísmo. Resta ler por prazer. Sim, é uma hipótese. Outra será ler porque não
se sabe fazer outra coisa. Aliás nem constituem um dilema. A incompetência e o
prazer andam de mãos dadas muitas vezes. Aqui e ali, a muralha de nuvens abre
pequenas brechas por onde escorre uma luz viva e se avistam farrapos azuis do
céu. O tempo passa, o melhor será mesmo pegar no livro.
sábado, 3 de março de 2018
Deveres
Talvez se devesse, aos sábados pela manhã, ao acordar,
recitar como uma oração o poema de Fernando Pessoa que começa com os inusitados
versos Ai que prazer / Não cumprir um
dever. O problema é que nunca sabemos a que deus devemos dirigir a prece.
Os deuses, mesmo os mais condescendentes, são zelosos em matéria de dever e,
raramente, atendem tais súplicas. Não se impressionam nem com a luz de uma vela,
mesmo eléctrica. Noutros tempos, uma hecatombe movia-lhes o coração. Mas que
mortal devedor de deveres tem cem bois para o sacrifício. E assim, enquanto a
chuva se entrega à vertigem da queda, entrego-me aos deveres que devoram o
tempo. Mais que isto, lembra o poeta,
É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca… Era sábio esse Cristo, mas o que
se poderia esperar do filho de Deus? Que lesse Aristóteles, que ensinasse
economia, que escrevesse um tratado de finanças? Um pombo passa diante da minha
janela e poisa no telhado da frente. Será o Espírito Santo? Também Ele há-de
ter os seus deveres.
sexta-feira, 2 de março de 2018
Homofonias
É um problema de homofonia. E com o passar dos anos a patologia
tende a agravar-se. Ontem, por exemplo, depois de discorrer sobre a vexata quaestio das persianas e das
minhas deambulações por esta cidade que, em seu seio, me acolhe, acabei por
desconcertar, e aqui é mesmo desconcertar, o texto escrevendo “concertadas” no
lugar de “consertadas”. O que me valeu foi uma alma amiga que há pouco me fez
notar a situação. Não é que não possa haver um concerto para persianas e viola
da gamba ou um quinteto de cordas e persianas. Pode, mas não com as minhas
persianas, as quais não foram preparadas para o efeito. Limitam-se a subir e a
descer, isto quando não entram em greve, como é o caso. Tudo isto para dizer
que um erro é um erro, mesmo que a culpa esteja na homofonia e na desatenção de
quem escreve. Se fosse dado a angústias, o que não sou, diria que o que me
angustie é a possibilidade que o conflito com a homofonia aumente e que novos
desarranjos floresçam. O que hei-de eu fazer?
quinta-feira, 1 de março de 2018
Conservação
Devido a um problema com persianas tive de fazer, para acertar
a visita de um técnico, um trajecto diferente para casa. Cheguei a uma altura
na vida em que qualquer alteração aos hábitos se torna penosa. Embora, a
verdade seja dita, esta inclinação para o conservadorismo seja coisa antiga. E
foi isso que me entreteve no caminho, enquanto os olhos iam absorvendo a
melancolia que se desprende de tudo nesta pequena cidade. Talvez essa
melancolia se deva à inclinação conservadora, a qual gera uma incompreensão
para muito do que se passa por aqui. A minha esperança, ponderei, reside nos
castanheiros da avenida, quando chegar a hora sumptuosa da floração. Serão
ainda algumas semanas de pura irrealidade. A pujança das árvores, as cores das
pétalas, o rio e, sobre tudo isso, as muralhas do castelo, elas que já viram de
tudo, a espiar a vida pobre que sob as suas pedras se desenrola. Talvez para a
semana tenha as persianas consertadas, pensei. Não há nada como conservar as
coisas.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Beco sem saída
Quando hoje passei pela ponte do Raro e olhei as águas
lembrei-me de uma velha canção de Simon & Garfunkel, Bridge Over Troubled Waters. Uma lembrança a despropósito, como me
acontece com frequência. Nem a minha disposição é de andar a distribuir
consolo, nem as águas do rio, do rio da minha aldeia, quase o digo, sonham
sequer em ser turbulentas. Estas súbitas aparições do passado não deixam de ser
misteriosas. Seguimo-las e não deixamos de ir dar a becos sem saída. Quantas
vezes passei por aquela ponte? Quantas vezes, num tempo tão distante, terei
ouvido aquela canção? E tudo o que me motivou num e noutro caso tornou-se tão
obscuro que sinto crescer dentro de mim uma dúvida sobre se alguma vez
atravessei a ponte ou ouvi a canção. E assim lançada, a minha mente já se
precipitava para uma meditação metafísica sobre a irrealidade da existência. O
que me valeu foi o semáforo ter aberto. A salvação está em qualquer lado, até
num semáforo perdido numa cidade que, também ela, parece um beco sem saída.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Falar do tempo
Adiar o inadiável, pensei ao ver a chuva cair. Não tarda e a
Primavera chega com o seu cortejo de ilusões, os corpos tomados por uma ânsia
de Verão e eu, temeroso, sinto já a penumbra fumegante com que o calor me
envolve e me lembra, com o estilete do acinte a enterrar-se nas veias, a finitude
e a mortalidade que me constituem. Falar do tempo, penso, é aquilo que cabe a
quem já não tem nada para dizer. Aos negócios humanos sou cada vez mais
estranho e do resto nada sei. Quando não sou capaz de estar calado, sobra-me o
tempo como motivo de conversa. Descrever os dias de chuva, os de sol e os que
não são uma coisa nem outra. Ah se tivesse uma libertação para proclamar ou uma
salvação para anunciar, tudo seria mais fácil. Nunca faltam adeptos, mas como
verdade basta-me a chuva que cai, o sol que brilha, as nuvens que passam, a
monotonia com que a noite se ergue do ventre entumecido do dia. Chove, não é
mau.
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Anjos
Só se ouve um piano, mas o título da peça é “Três anjos
cantavam”. Os meus ouvidos não estão preparados para escutar as vozes dos
anjos, pensei, enquanto deixava o espírito enovelar-se nos acordes musicais.
Talvez o título seja uma metáfora ou uma falsa promessa. Promete vozes de anjos
e escutamos um piano. Também a tarde de hoje é feita de falsas promessas, presumo.
O céu cinzento anuncia chuva, mas ela recusa-se a cair. Olho para a rua e os
transeuntes caminham despreocupados, presos aos seus sonhos, mãos vazias como
se soubessem que a água prometida é uma conjectura sem sentido. Volto para a
voz dos anjos e oiço as notas saídas do piano. Talvez essa voz não seja mais
que o silêncio, esse silêncio que abre o corpo do homem ao segredo da música. Observo
inquieto a rua e ainda não chove. Um anjo poisa no telhado em frente, quase se
desequilibra. Recolhe as asas e canta.
domingo, 25 de fevereiro de 2018
Memória
Temos uma certa crença fundada em experiências antigas – por
exemplo, o caminho que liga duas povoações e que foi percorrido inúmeras vezes
nos anos setenta do século passado – e estamos certos dessa crença. A certa
altura passa-se, dizemos ufanos a quem nos acompanha, por aqui e por ali. Depois,
descobre-se que não se passa nem por aqui nem por ali e ficamos perplexos sem
saber se já não se passa ou se nunca se passou. A memória é um poder estranho e
pouco confiável. Quando pensamos que ela reproduz uma realidade vivida, ela
logo nos mostra que a sua função é inventar vidas que nunca existiram, caminhos
que nunca foram percorridos ou acontecimentos que nunca aconteceram. Ou talvez
tudo isto seja uma história dominical, onde os caminhos do fim-de-semana não
coincidem, por respeito ao ócio, com os dos dias úteis, subjugados que estão à
corveia que a existência nos impõe.
sábado, 24 de fevereiro de 2018
Vida examinada
Os dias ensolarados de Fevereiro arrastam consigo a triste
propensão de nos darem a pensar aquilo que deveríamos não trazer à memória. Algumas
contabilidades esquivas têm tendência, se nos descuidamos, a colocar-nos
perante o número de anos já vividos. O pior do exercício não será tanto a
compreensão da cada vez mais próxima falência do projecto, com o encerramento
definitivo da aventura. A falência é a contrapartida necessária e incondicional
de as portas terem sido abertas. O pior é aquela linguagem cifrada em livro
razão, balanço, deve e haver. Toda a vida é vista, então, como um acumular de
entradas e saídas, a que o exercício esotérico da contabilidade parece ser
chamado a examinar. Consta que Sócrates, o mestre de Platão, terá dito que uma
vida não examinada não merecer ser vivida. E o anjo negro, aquele que também
habita dentro de nós ao lado do anjo branco, pergunta: e uma vida examinada
será que merece? O melhor é ir apanhar sol e ver se falta muito para os
castanheiros da avenida florescerem.
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
Precaução
Não há pior tentação, pensei ao entrar no carro para me
dirigir para casa, que a de tentar corrigir a natureza humana. Quando a ideia nos
toma de assalto, a única coisa que devemos fazer é esperar com paciência que
ela passe. O importante, meditei, não é melhorar a humanidade, mas precavermo-nos
dela, mesmo – ou principalmente – se entre ela e nós não há qualquer diferença.
O sol de sexta-feira tem sempre o condão de me fazer pensar sobre coisas em que
não devia pensar.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
Cegueira
Penso muitas vezes na inevitabilidade das coisas e na
estranha cegueira que cai sobre os mortais. Não estou a falar daquilo que
acontece necessariamente devido a uma lei qualquer da natureza. Refiro-me ao
que poderia não acontecer – e que, muitas vezes, seria desejável que não
acontecesse – mas que acabará por acontecer. Há um momento em que isso poderia
ser evitado, mas a cegueira para o que pode vir é tanta que, quando tudo se
torna manifesto, já é tarde para o evitar. Os que se riam da mera possibilidade
são os primeiros a chorar, como se eles não fossem, por omissão, uma causa do
estado lamentoso a que se chegou. Os deuses são travessos e raramente perdem
oportunidade para se rirem das lágrimas dos homens.
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018
Mortais
O tempo é faceto ou, talvez, volúvel. Ainda ontem prometia,
sem pudor, o devir rápido de uma primavera temporã. Hoje, arrependido e tristonho,
enovela-se em sombras, deixando vir uma luz equívoca que, dificilmente,
alegrará o coração daqueles que, soturnos, vejo calcorrear a avenida. A
tonalidade cinzenta da hora parece chumbo que os meus conterrâneos carregam
sobre as suas costas. Cada um, pensei então, é uma encarnação do filho de
Jápeto, o infeliz que foi condenado a suportar, em seus ombros, os céus. Não há
como a mitologia para enquadrar as coisas da vida. O pior, ocorreu-me logo, é a
impossibilidade de ver neles a sombra de velhos titãs conjurados contra um
poder supremo. Sob a copa das árvores passam apenas mortais conciliados com o
seu destino. Antes assim, conformei-me eu também.
domingo, 18 de fevereiro de 2018
Antevisões
Esta luz faz lembrar já os arpejos da Primavera, pensei.
Logo, uma onda de calor desceu sobre mim numa antevisão do que virá. O problema
todo está nesta maldita Idade de Ferro que nos foi dada a viver. Como o velho Ovídio
explica – e outros antes dele – na primeira Idade, a de Ouro, a Primavera era
eterna, mas tendo sido devorado esse tempo, com a passagem à Idade de Prata, as
estações foram divididas e a Primavera, antes infindável, é agora breve e logo
cede o seu reino ao tormentoso Estio. E com esta recordação os raios solares
que descem sobre a avenida em vez de consolo são já uma ameaça tórrida a que
ninguém, contudo, presta atenção, entregues que os homens estão à celebração da
glória luminosa do sol. Recolho-me em casa e tento lembrar-me dessa outra
pátria que haveria de ser a minha se a ordem do frio e do calor, da luz e da
sombra coincidisse com o meu desejo. E em mim não há mapa onde a encontre nem
voz que a sopre aos meus ouvidos.
sábado, 17 de fevereiro de 2018
Transformações
Devido a uns assuntos da profissão dei por mim a meditar
sobre transformações. Como é que um adolescente de 15 anos entenderá a
transformação de um princípio, máxima na linguagem de Kant, que determina
subjetivamente o meu comportamento numa lei universal que haveria de ordenar a
todos os homens, em situação semelhante, a comportarem-se daquela maneira?
Penso muitas vezes que seria muito mais fácil ensinar-lhes o processo alquímico
da transformação do chumbo em ouro do que tornar evidente que a única
singularidade lícita é aquela que coincide com a universalidade. Aos 15 anos,
tanto quanto me lembro, a singularidade é tão esplendorosa que nem se concebe
que para além dela haja outra coisa, quanto mais uma universalidade na qual
deverão coincidir todos os seres singulares, caso seja boa a sua vontade.
Noutros tempos talvez se ensinassem coisas mais interessantes e não menos
profundas. Por exemplo, explicar por que razão a filha de Mínias, Alcítoe, é
ímpia ao negar a Júpiter a paternidade de Baco e, por isso mesmo, afirmar que
este não merece os ritos mistéricos onde é cultuado. É então que, por impiedade
para com o deus que me permite ganhar a vida, chego a pensar que os atenienses
não estiveram mal em condenar Sócrates à morte por corromper a juventude.
Havendo a paternidade de Baco para discutir ou a arte da transformação do
chumbo em ouro para analisar, não será corromper a juventude querer que saibam
que o mistério do comportamento moral reside todo nessa metamorfose do querer
singular numa lei universal que há-de determinar todos os quereres?
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018
Envelhecer
Sentado ao balcão, o homem metia conversa com as mulheres
que passavam. Elas, bastante mais novas, condescendiam em trocar umas palavras.
É penoso envelhecer, pensei, enquanto ia almoçando apressado num canto do bar.
A tarde entrava pela grande vidraça e caía ensolarada e impiedosa sobre as mesas.
A Primavera aproxima-se, até um corpo gasto ainda sente o sobressalto, concluí.
A boca do homem enrolava-se à procura de uma palavra, uma única que pudesse dizer
a memória fugaz do desejo, daquele desejo que se desejaria ter. Quase senti
vergonha de estar ali e de assistir à luta desigual do corpo gasto contra o
tempo. Elas sorriam perante a banalidade, respondiam com outra e seguiam em
direcção à porta, sem que ele esboçasse um protesto. Eram as regras do jogo,
deduzi. A rua esperava-as e, na sua complacência, pressenti o medo que as
habita, esse medo de chegar a hora em que faltam palavras para o desejo, em que
este para se dizer gagueja e descobre as piores, aquelas em que nunca deve ser
dito. É penoso envelhecer nestes dias de sol, em que a Primavera se anuncia e o
deus anda solto e desamparado pelos campos.
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018
A seda da noite
As noites nem sempre são boas conselheiras. Envolvem-nos com
a sua tecelagem de equívocos e enganos, arrastam-nos para a turbulência que
habita o centro de toda a bonança, prendem-nos ao risível que nunca se cansa de
aflorar no rosto, no nosso. Então vemos a vida a desfiar-se e raras são as
vezes que gostamos daquilo que se vê. Talvez a noite tenha a virtude de tornar
mais sombria a realidade e de deixar, na boca dos homens, uma trago amargo, o
fel que o passar dos dias foi acumulando. Há pouco, num dos apartamentos aqui
perto ouvia-se um bebé chorar. Agora, são uns saltos que golpeiam o chão de
pedra e ressoam dentro do cansaço que há mim. Espreito pela janela e tudo
parece imóvel. Ao longe ouve-se o frufru da seda da noite. Nada é eterno,
talvez a mulher se tivesse descalçado e a criança adormecido. Pego num livro,
mas sinto os olhos a picar.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018
Quarta-feira de cinzas
Chegou a quarta-feira. Cinzas derramam-se dos céus,
arrastadas pela melancolia do sol, banhadas na água lustral de nuvens que
passam devagar sobre os telhados da antiga vila. E quase sinto saudades
daqueles tempos em que havia Quaresma com jejuns e proibições, uma árdua
preparação para a ressurreição da carne. Volteio pela cidade de carro e penso
que ela, na verdade, entrou há muito tempo na Quaresma e promete por lá ficar,
sem que uma ressurreição se adivinhe no horizonte. É agora um lugar de
melancolia. As pessoas, aquelas que vejo atarefadas e sombrias, atravessam-na
com cuidado, assombradas por um espectro que não sabem identificar. Há muito
que estas ruas e praças, que estas gentes, onde me incluo, entraram numa
irremissível quarta-feira de cinzas.
terça-feira, 13 de fevereiro de 2018
Não saber
As árvores do passeio em frente foram podadas. Parecem agora
mãos disformes erguidas aos céus e não sei se elas se abrem numa súplica ou se
mostram as garras afiadas em ameaça. São cada vez menos as coisas que sei,
constato não sem alegria. Por debaixo delas passam, indiferentes, pessoas e
cães. Um casal, de mão dada, arrasta-se, ela presa a uma mala excessiva e ele de
passo incerto, deixando, a cada instante, a perna esquerda um pouco mais para
trás. Talvez a felicidade deles resida naquela mala demasiado grande ou no
esforço de trazer a perna ao seu lugar. Nunca sabemos o que torna os outros
felizes. E o melhor é não o saber. Umas persianas abrem-se e da janela chega a
imagem de uma mulher. Acende um cigarro. O fumo sai-lhe pela boca e pelas
narinas. Talvez a felicidade que lhe cabe nesta vida esteja toda nesse fumo que
o corpo deseja para logo o expelir. E sigo pela rua fingindo não ver aquilo que
vejo. Toda a virtude, concluo, está em fingir não ver o que se vê. Virtude e
sabedoria.
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018
Desprezo
Fiquei todo o dia a tratar de expediente escolar, enquanto,
lá fora, o sol se abria sobre a cidade e caía delicado nos prédios, soprado por
um vento insípido. As nuvens, julgo que serão cúmulos, navegam lentamente pelo
oceano bonançoso do céu, alheias aos homens. Envelhecer será, penso-o agora,
contentar-se com a indiferença com que a natureza acolhe os meus desejos. Não
há nela nenhum projecto para os frustrar, apenas a sabedoria de os não tomar em
consideração. E é este desprezo pelas ânsias da humanidade, admito-o, aquilo
que ela terá de mais admirável.
domingo, 11 de fevereiro de 2018
Na hora anunciada
Mesmo se sombrios, são gloriosos os domingos, os que não
possuem uma segunda-feira no horizonte, pensei ao chegar à janela. O céu
cinzento não é uma ameaça mas uma promessa, ilusória como toda a promessa, de uma
eternidade mesmo ali ao alcance da mão. E recolhi-me nessa fantasia, ruminando
projectos e arquitectando obras, semeando o porvir de esperanças para as quais,
sei-o bem, ele não está disponível. Um pombo lacera o céu, plana de asas hirtas
como se não houvesse gravidade, sustido pelo vento e pelos meus olhos que não
se desprendem daquele voo. E nesse breve instante a eternidade manifestou-se,
suspendendo o tempo, e falou com a sua língua de fogo para que eu a escutasse.
Fechei os olhos e ao abri-los não havia pombo, nem língua de fogo, nem a eternidade
falava dos seus segredos no fundo do meu coração. É domingo e a segunda-feira
já se ergueu para pôr os pés ao caminho e chegar aqui na hora anunciada.
sábado, 10 de fevereiro de 2018
Signum citationis
Por vezes deparo-me com expressões que têm o condão de salvar o dia. Não que ele esteja perdido ou que eu sinta a sua queda iminente, mas está embaciado por algum desejo que turba o coração ou ofusca a luz da razão. Sento-me e olho para a rua. O sol persiste em iluminar a terra, reverbera nos vidros dos carros que passam. Um dia ainda será acusado de contumácia no crime de trazer a luz, prognostiquei. Leio alguém que fala sobre esse sinal equívoco que tem o nome de aspas. A dado momento, escreve, referindo-se-lhes, signum citationis. Fiquei siderado a olhar para a expressão e deixei que ele quase cantasse em mim. Só a música nos pode salvar, pensei então, deixando-me embalar pelas aliterações e assonância presentes naquelas duas palavras de uma língua morta. O vento empurrava a ramagem do arvoredo sem que a música se desvanecesse. E de súbito percebi a vida como uma citação de um texto apócrifo, umas vezes marcada pela musicalidade do signum citationis, outras exibindo-se como um plágio sem pudor.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
Carnaval
Quando se aproximam os dias de Carnaval sinto crescer a desolação. É
possível que outrora tenha existido uma qualquer relação de continuidade com as
Saturnais romanas ou com grandes festas dionisíacas. Agora são dias em que o
próprio sol se envergonha e, quando brilha, fá-lo quase com pavor de iluminar a
terra. De manhã, aqui ao pé de casa, crianças de uma escola desfilavam ao som
de uma música abrasileirada. Pais e avós olhavam embevecidos, tiravam
fotografias, filmavam. E toda aquela alegria era tão triste e tão desolada, que
o coração se apiedou e a razão, misericordiosa por uma vez, não se esqueceu de
recordar que em breve tudo terá passado.
domingo, 4 de fevereiro de 2018
Enredos
As noites de domingo são lugares vazios onde qualquer coisa
pode encontrar abrigo. Um sentimento, um desejo, a emoção que se escapou ao
controlo feroz da razão. Por vezes, chegam memórias antiquíssimas e recolhem-se
no desvão com que o fim-de-semana termina. Não sei porquê, lembrei-me da
atenção com que, na casa de uns tios-avós, se ouvia no rádio, num tempo em que as
televisões eram raridade, a informação sobre as previsões do estado do tempo.
Isso seria quase tão importante, penso agora, como ir à missa ao domingo. Talvez
estivessem interessados autenticamente no que iria acontecer, se precisariam de
chapéu de chuva ou se o calor iria trazer o fogo como ameaça. Prefiro, porém,
imaginá-los a registar a previsão para depois verificarem se ela se cumpria ou
não, uma atitude de vigilância aos prognósticos da meteorologia. E é na esteira
desta memória que entro na noite de domingo. Deixo-a trabalhar dentro de mim,
tento lembrar-me das faces desses meus tios, dos seus gestos, das palavras.
Silêncio e escuridão. Foi há tanto tempo que tudo isso foi rasurado e dizimado
pela voragem com que a vida, como um romance, se enredou.
sábado, 3 de fevereiro de 2018
Viagens genéticas
Talvez uma parte dos meus genes tenha feito uma grande
viagem, vindos de paragens setentrionais frias e pouco luminosas. Do que sei
deles, não há indicação que tal tenha acontecido, mas a minha sabedoria, com
tudo o que essa sabedoria tem de precário, não vai muito para além dos dois
séculos. A verdade é que cheguei à janela e vi uma tarde cinzenta, sombria, a
chuva a cair. Enquanto olhava com prazer para a rua, algo em mim sussurrava:
esta é a tua pátria, uma terra de sombras, dias pequenos e frios. As pessoas
corriam para se abrigarem da chuva e eu pensava que raramente sentia saudades
dos dias de calor, dessas orgias de luz, abulia e transpiração. A chuva parou. A
tarde declina e sento-me como se este lugar fosse outro, longe daqui, sem que
uma ameaça de fogo sobre ele impendesse, logo que a primavera se aproxima da
tormenta estival. Sabemos lá de onde vêm os nossos genes.
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018
A escada rolante
A semana fechou-se no escuro da noite, deslizou sorrateira para os
braços do esquecimento, para o porto onde os homens, depauperados pela
inutilidade dos dias, aguardam o festim do sábado, o grande baile em que
dançam, dançam, dançam na sala vazia da solidão. As noites de sexta-feira são promessas
que o tempo nunca cumprirá. Sento-me, cerro os olhos e deixo o pensamento
vaguear. O ideal seria não pensar, parar a corrente de consciência e entrar na
escuridão de mim mesmo, escutar o inaudível que uiva no âmago do corpo,
aproximar-me desse silêncio que as vezes ecoa numa imagem, num gesto, na pétala
de uma rosa que o vento arrasta. Na aparelhagem, um quator solta-se, inunda o ar e cai sobre mim. Também nele o
silêncio ladra, penso e levanto-me. Vou jantar e logo sou arrastado pela escada rolante
do tempo.
terça-feira, 30 de janeiro de 2018
O promontório e a charneca
A luz de Inverno é um promontório de onde espreito o mundo. As casas
vacilam no meu olhar e as pessoas, tão pequenas se vistas daqui, caminham
oscilantes, com o pensamento ocupado em sabe-se lá que demandas. Protejo-me
nestas escarpas luminosas, tudo o que vejo imagino-o como um oceano matinal,
perdido no ir e vir da ondulação, a rumorejar bravio na pressa do trânsito. O
melhor que a idade traz, penso, é poder confundir tudo, o mar com a cidade, as
pessoas com cristas das ondas, o fluxo do trânsito com o ribombar das águas
salgadas ao bater na escarpa. Quando a luz de Inverno se transformar em luz
primaveril, o mundo começa a tornar-se plano. O promontório de onde espreito
será então uma charneca polvilhada de pedras e desolação.
domingo, 28 de janeiro de 2018
Bênçãos
Quando levantei as persianas, a manhã já ia alta, deparei com um sol melancólico, apesar do brilho que os seus dardos faziam cair sobre o casario. Pensei: é um sol matinal de domingo igual a tantos outros dos domingos de Inverno. Então, recolhi-me e deixei os raios solares dardejarem ao abandono. Quando me sentei à secretária, peguei em O Prelúdio, de William Wordsworth, comprado ontem, numa tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Leio o primeiro verso “Oh, uma bênção existe nesta doce brisa”. Então, lembrei-me do meu virar de costas ao sol dominical. Também eu deveria ver ali uma bênção, mas não vi. Depois, olhei a rua através dos vidros da janela. Os carros reluziam e percebi que o tempo do romantismo que permitia ver bênçãos nos elementos naturais acabara há muito. Um carro apitou e ao longe vibra uma sirene. O sol persiste preso à sua melancolia.
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
Chegar e partir
Chegou como se tivesse vindo de muito longe. Parou, rodopiou com calculada lentidão sobre os tacões, sorriu ao sentir o sol a iluminar-lhe o rosto e sentou-se. Não pretendo nada, respondeu quando o empregado lhe perguntou o que desejava. Nada, exclamou este atónito. Isto é uma esplanada. É uma esplanada, confirmou ela. E logo se levantou, o sol bateu-lhe no rosto, tornou a rodopiar com calculada lentidão sobre os tacões. Parou por um instante e partiu como se fosse para muito longe.
quinta-feira, 21 de dezembro de 2017
Ferida narcísica
O melhor seria deixar de ler jornais, pensei ao ver a
notícia do Público. Não há quem não se ache o fruto de uma ocasião única e
especial. Nesta coisas ligadas à identidade e à existência, até os mais
empedernidos socialistas se acham individualistas e, em segredo, liberais,
filhos de projectos racionalmente planeadas para os tornarem naquele ser único
e já pleno de iniciativa ainda mal concebido, especulei ancorado na minha
triste formação filosófica. Acreditamos nisso como as crianças crêem no Pai
Natal ou nesse ser benfazejo conhecido por Fada dos Dentes. E eu por que motivo
haveria de ser excepção? Não era. Não era até hoje. Agora, porém, sinto-me
abatido, terrivelmente. O que descobri
eu? Eu que nasci em Setembro, e por isso me achava tão virginalmente distinto,
fui confrontado, amaldiçoado jornal, com o mais tenebroso dos colectivismos. Um
estudo, feito por entidades respeitáveis, mostra que Setembro – isso mesmo,
nove meses após o Natal – é o mês com mais nascimentos nos países de cultura
cristã no hemisfério Norte. Não bastando isto, o nefando artigo ainda tem a
desfaçatez de afirmar que os ciclos de reprodução humana são guiados pela
cultura e coincidem com estados de espírito colectivos. Meu Deus, que fizeste
tu da singularidade da minha concepção? Foi para me humilhares deste modo que
inventaste o Natal? É assim que nascem, para abater o nosso orgulho pecaminoso,
as feridas narcísicas, concluí eu, lembrando-me das figuras tenebrosas do
Copérnico, do Darwin e do Freud.
quarta-feira, 20 de dezembro de 2017
Metamorfoses
Esta é uma época em que desejamos que a lâmina afiada do sol
penetre na nossa pele e se apodere do sangue, aquecendo-o para que o corpo,
assim animado, posso calcorrear os dias que o calendário, esse deus inexorável,
coloca diante de nós. É nisto que penso quando saio de uma livraria com as Histórias do Bom Deus, de Rainer Maria
Rilke, na mão. O que me terá levado a comprar o livro, pergunto-me. O nome do
autor? A curiosidade pelos contos de um grande poeta? A edição com um design retro? Enquanto desfio para mim
mesmo as causas possíveis, entrego-me ao sol e sinto um calor agradável a
invadir-me o corpo. As pessoas passam atarefadas. Algumas cumprimentam-me.
Retribuo, e dirijo-me para casa. Na verdade, há uma razão suplementar para
comprar o livro. Quando o tirei da prateleira e o desfolhei dei com o título de
um dos contos que me inclinou definitivamente para a aquisição: “De que Modo o
Dedal de Coser se Transformou no Bom Deus”. Pode-se pensar que há em mim um
intuito blasfemo. Por exemplo, afirmar coisas como se o Bom Deus é, além de
bom, omnipotente, nada o impediria de ter sido, em certas circunstâncias, um
Dedal de Coser. A blasfémia, porém, é um estilo literário que não pratico. Dou
longos passeios a pé, falo de coisas inúteis, desperdiço o meu tempo nisto ou
naquilo, mas a blasfémia não consta da rapsódia de inclinações do meu carácter.
O que me interessa é a metamorfose. Paro num dos passeios da avenida Sá Carneiro
e olho as árvores, as pessoas que entram e saem dos bancos, os carros que se
apressam para chegar a horas a lado nenhum. E, penso para mim, se Gregor Samsa,
o infeliz caixeiro-viajante, se pôde transformar numa barata gigante, não é
inverosímil que um Dedal de Coser possa metamorfosear-se no Bom Deus. O sol de
inverno, reflicto, não faz muito bem. E o pior é se ele incide na cabeça.
terça-feira, 19 de dezembro de 2017
Não sei
Da janela do meu escritório, avisto o hospital. Sombrio e
lúgubre. Os fungos da humidade tomaram conta das paredes ainda há pouco brancas
e resplandecentes. Agora é uma nódoa na paisagem, uma mancha que insiste em
cravar as garras da sua solidão no meu horizonte. Bocejo. É o que faz deitar
tarde e levantar cedo, penso. O melhor seria dormir uma sesta, mas estou comprometido
com o baby-sitting das minhas netas.
Acho que elas preferiam que eu dormisse. Terão as suas razões que, como todas
as razões infantis, são enigmáticas. Conjuram no quarto não sei que aventura e,
como é hábito, não tardam em invadir-me
o escritório, para se sentarem na secretária da avó e brincarem, pobres infelizes,
às escolas. Chegam e uma diz para a outra: vá, diz sim ou não, não sei não é
resposta. E eu fico siderado por tanta autoridade a transbordar de uns sete
anos ainda por fazer. Olho pela janela, o sol esbranquiçado cai em borbotões
sobre a rua e pergunto-me se ela alguma vez irá saber que a única resposta que
temos, seja para o que for, é não sei. Vá, insiste ela, diz sim ou não.
segunda-feira, 18 de dezembro de 2017
Perfeição
Um
frio glorioso caiu sobre a cidade, cobriu-a de um veludo vítreo e negro, onde,
a custo, se avistam vultos que lutam para chegar a casa. A náusea da repetição,
pensei, de fazer sempre a mesma coisa, dia após dia, semana atrás de semana,
chega a ser uma bênção. Tudo parece ter um destino e cumpri-lo com perfeição.
Também eu pertenço a essa perfeição nauseante, constatei, enquanto o frio se
cerrava sobre a face. Talvez vivamos mesmo no melhor dos mundos possíveis,
passou-me pela cabeça ao atravessar a passadeira, enquanto alguns carros
paravam solícitos, também eles habituados à perfeição com que a vida se regula.
Quem passa por mim vai em silêncio e mal olha para as iluminações de Natal.
Pelo contrário, eu olho-as e sinto uma tristeza tão grande que logo deixo de
crer que se viva no melhor dos mundo possíveis. Sou volúvel, constato ao mudar
de opinião. Se este fosse o melhor dos mundos, poderia haver guerras,
homicídios, violências, coisas que há em todos mundos. Não haveria por certo,
iluminações de Natal que nos inclinam para a tristeza. Aventuro-me em direcção
à farmácia. Ali tudo é claro, nítido e lança sobre o coração do paciente a
ilusão de que haverá sempre, neste ou noutro mundo, uma cura à sua espera. Não
há, e isso, que deveria entristecer-me, tranquiliza-me.
domingo, 17 de dezembro de 2017
A luz branca
A luz branca deste domingo cai sobre a cidade como um véu. E
assim veladas as pessoas passam devagar na avenida, respiram lentamente,
esperam por certo que o sol as aqueça. Algumas deambulam atreladas a pequenos
cães. Há quem corra solitário para alcançar a boa forma que nunca haverá de
chegar. Um ciclista, daqueles que se equipam da cabeça aos pés, apeia-se, abre
o grande caixote do lixo verde e deita qualquer coisa lá dentro e regressa, em
paz com a sua consciência, ao selim e à azáfama de pedalar. As árvores, medito,
têm um singular destino. Umas despem-se no Inverno, enquanto as outras, tomadas
por um pudor ancestral, persistem em manter o folhedo que as cobre. Há quem
diga que possuem folha persistente. Prefiro pensar que sofrem de um embaraço
contumaz. E é para isto que serve a luz branca que cai, naquele segredo
invisível da onda-corpúsculo, sobre as coisas. Para que alguém as possa ver e
descrever, não na sua essência, mas nos acidentes em que elas se manifestam. Os
carros teimam em não deixar de passar. Vão lentos, temerosos, também eles são
um acidente que nenhuma essência salvará. Os domingos são sempre dias
incompreensíveis.
sábado, 16 de dezembro de 2017
A praça
Passei há pouco pela Praça 5 de Outubro. Parece uma viúva a
tiritar de frio, pensei ao olhá-la. Depois, disse para mim mesmo: estas
analogias não têm pés nem cabeça. E fiquei a contemplá-la no abandono que é o
dela, perdida a remoer pensamentos obscuros, a desfiar perfídias e vinganças,
enquanto uma ou outra sombra a atravessavam. Há lugares que gostaríamos que
fossem eternamente aquilo que, um dia, foram para nós. A eternidade, devia
sabê-lo de cor, não é um atributo das coisas humanas, nem sequer dos lugares
que fervilharam de vida. O espírito que em tempos a animou retirou-se, discorri.
Alguém, apressado, acena-me e desaparece no crepúsculo. Demoro-me mais uns
minutos, olho-a lentamente, deixo que uma ou outra recordação venha até mim.
Depois, rodo a chave na ignição, engreno a primeira e faço o carro deslizar dali
para fora. Não devemos perturbar a viuvez de uma viúva. Exclamei, sem que
ninguém me ouvisse.
sexta-feira, 15 de dezembro de 2017
Esperar
Fechei devagar a porta da sala e saí. Tinha acabado, pelo
menos por uns dias. A tarde começara cinzenta, mas não deixava de ser tocada
por um halo de esperança. O ruído dos intervalos ficava para trás. Quando
passei pelo portão, respirei fundo. Haverá ainda dias de reuniões e papéis, de
actas e do resto, sempre tão elusivo, que é necessário para satisfazer a fome
insaciável do Leviatã moderno. Tudo isso se não servir para mais nada, há-de
valer para a remissão dos meus pecados, ponderei sem entusiasmo. Paro na
passadeira junto ao tribunal. Apressado, um homem, porventura um advogado,
atravessa-a. Aonde o levou aquele passo rápido? Não o cheguei a perceber.
Talvez o esperasse alguém perdido no labirinto de um processo ou talvez fosse a
mulher, impaciente e pouco solícita, com a toga que ele teria esquecido em
casa. Nunca se sabe o que atormenta as pessoas e as precipita mundo fora. No
semáforo, logo a seguir, torno a parar. Como acontece sempre, a Antena 2 perde
o sinal e o carro mergulha no silêncio. Espero. E é tudo o que resta a um
mortal, esperar. O quê? O melhor é não o saber. Lá atrás, ficaram as salas
fechadas, pensei, enquanto o Quator de Messiaen retornava e estendia sobre mim
a luz dolorosa que é a sua. É sexta-feira, pensei.
quarta-feira, 13 de dezembro de 2017
Oblívio
Sento-me e pego num livro, do poeta Daniel Jonas, denominado
Oblívio. Como os amores, também há títulos
perfeitos, concluo. Oblívio é a fase da existência em que entrei. Assim como
antes a memória era excessiva, agora o esquecimento progride sorrateiro mas
voraz. E com isto esqueci-me do que queria vir aqui contar. Não sei se um
episódio que me atormentou o dia – mas qual? – se uma descoberta que a noite me
trouxe. E é neste oblívio que tento navegar no mar encapelado da vida. O melhor
seria ir dar uma volta e fumar um cigarro, talvez me lembrasse, mas não sou animal
noctívago e há tempo que não toco em tabaco. Vale-me o título do livro que se
estende para mim como uma mão solidária, como quem diz que, em matéria de
esquecimentos, não estou sozinho no mundo. O melhor, penso, será seguir o
conselho do poeta: “Pedala, vá pedala, não faz mal; / De tanto pedalares, nesse
tour / De igual cenário és um novo
Artur, / Um velho visionário pelo Graal.” E escrito isto, logo me lembrei que,
depois de jantar, não consegui recordar-me se tinha tomado o comprimido para a
tensão arterial.
terça-feira, 12 de dezembro de 2017
O ardil
Dezembro deixou que os dias se contaminassem de
festividades. Nem o frio bastou para evitar a algazarra que de tudo há-de tomar
conta. São dias de alarido, penso, enquanto rasgo a noite com a luz dos faróis.
O calendário é, sei-o bem, uma fortaleza inexpugnável, uma emanação da frieza
cósmica para nos agarrar pela coleira e pontapear para dentro da vida. Ou da
morte, acrescento em silêncio. Ao sair do carro recebo a carícia do vento e
olho para o café ao lado de casa. Há muito que não entro ali. Outrora, sabia o
que poderia fazer num café. Agora, tudo se me estranhou e evito o deambular à
procura de uma mesa. Talvez esteja num processo de regressão vegetal, mas a
humanidade tornou-se muito pesada. A noite está fria e eu olho o café, a luz
que nasce dentro dele para morrer na tristeza dos olhos de quem passa. Se eu
entrasse lá agora? Um casal de namorados entra, enquanto duas senhoras, talvez
casadas, saem. Na verdade, o mundo é feito de estranhas compensações, constato.
Ah se eu entrasse ali, tudo se desequilibraria. O melhor é ir para casa,
resguardar-me de Dezembro e dos pensamento que, como tentações, me entregam ao
ardil do inimigo.
segunda-feira, 11 de dezembro de 2017
A fístula
Uma fístula, veja lá. E agora tem de ser operado para a
fecharem. Coitado, uma fístula entre a traqueia e o esófago. Ele há cada coisa.
Se há, pensei, enquanto as duas mulheres se afastavam de mim, para se perderem
no outro lado da estrada, arrastadas por um cão insignificante, desejoso de ir
cheirar os troncos húmidos pelas últimas chuvas ou por alguma cadela transida
de cio. Têm razão, concluí, enquanto elas se dissolviam na atmosfera espectral
que a noite derrama no frio dos dias de Dezembro. Não há nada pior do que
fístulas, podem crer. Aliás, o mundo não passa de uma rede fístulas por onde
comunicam coisas que nunca deveriam comunicar. Se houvesse menos comunicação,
os dias seriam mais fáceis, asseverei a mim próprio, talvez sem me convencer. E
enquanto seguia o meu caminho, ia arquitectando todo um sistema de oclusão de
canais. Via-me já como um grande cirurgião especializado em tratar das fístulas
do mundo que põem, para desgraça universal, toda a gente em comunicação com
toda a gente. E assim cheguei à porta do prédio onde moro. Uma, duas, três
vezes, e nada. Não consegui abri-la. Malditos códigos, não há nada como fechaduras
com chaves. A fístula que me haveria de levar da rua ao elevador estava obstruída.
São cruéis os deuses, meditei inquieto. Não perdem uma oportunidade para nos
fazerem a vontade.
domingo, 10 de dezembro de 2017
A faca
O dia cresce como uma faca espetada no peito. Oiço-o a
rasgar a carne, enquanto a pulsação enfraquece e a respiração entrecortada faz-me entrar num estupor, talvez a esperança de que imobilidade do corpo arraste
a do tempo, e tudo fique suspenso nesta glória eterna. Os domingos são
traições à esperança na eternidade, penso. Por isso, os homens iam à Igreja
para se lamentarem da fraqueza da carne. Ou talvez fossem para ver as mulheres
ou nem isso. Sei lá o que ia ou vai na cabeça dos outros, se nem na minha sei o
que se passa. O pior é a carne dilacerada pelo tempo que passa, como se este
fosse uma conspiração do espírito para sublinhar a sua superioridade perante a
falência sem fim do corpo. Agora, gostaria muito de moralizar, mas falece-me o
talento e a vontade. Bem na minha frente, a alguns passos, uma mulher compõe o
cabelo, passa nele a mão húmida e assenta-o, como se ainda tivesse um poder
para amainar os ventos. Não tem. E nem ela nem eu o temos para parar a grande
faca do tempo a ranger nos músculos deste domingo. O melhor é não ser
complacente.
sábado, 9 de dezembro de 2017
A rapariga cega
Os dias deslizam para o Natal e a minha memória resvala para
territórios que o tempo corrompeu. Na rua, carros e pessoas passam esmagados
pelo peso da quadra que se aproxima. E eu olho-os da minha janela e finjo-me
inocente de tantas preocupações. Depois, a minha avó chega-me apressada à casa
da memória. Vem com os cabelos brancos que sempre lhe vi, e eu recordo-me dos
dias em que brincava na despreocupação do quintal que havia na sua casa térrea.
Nessas alturas haveria por lá um ou outro primo, mas tudo era muito diferente
de hoje, o cobalto do céu era mais vivo e nada ainda tinha caído na ruína da
recordação. O quintal era dividido de um outro, talvez por uma paliçada de
canas ou por um muro, não sei bem, pois o que recordo é a cobertura, a que
chamavam enleio, de campânulas roxas e que a tudo ocultava. E foi desse outro
quintal que veio o objecto do meu primeiro amor. Uma voz feminina. A pronúncia,
o ritmo, as próprias palavras fascinavam-me, tão diferentes do que me era dado
ouvir, e eu, sem o saber, era tocado por Eros, desejando o meu coração, mais
que o corpo imaturo, que aquela voz não se apagasse e desabasse em silêncio
dentro de mim. Um dia soube, não sei bem como, que quem assim falava era uma
rapariga bem mais velha e, digo-o ainda com emoção, cega. Fiquei atónito. Como
seria possível que aquelas palavras saíssem da boca de alguém que não via? Os
primeiros amores, esses que não sabemos sequer que o são, trazem já consigo a ferida
narcísica que rasga a carne para que a realidade entre pelos olhos dentro.
Julgo que nunca a vi, talvez ela não saísse de casa, e a sua voz, que um dia
foi em mim o murmúrio de Afrodite, foi-se extinguindo até não ser mais do que um
amontoado de palavras partilhado na insipidez de uma rede social.
sexta-feira, 8 de dezembro de 2017
Humidade
Há um véu de humidade sobre as ruas. As pessoas caminham
pelo Outono com trejeitos de invernia. Piso as folhas e lembro-me dos plátanos
de uma casa onde vivi. Já vivi em tantas que lhes perdi a conta. Algumas ainda
pesam como uma sombra. Perderam as portas e as janelas, perderam a configuração
do espaço que tiveram na minha vida, mas ainda ressoam nelas as vozes dos que
já morreram. Há dias, como o de hoje, em que me levanto e penso nos meus
mortos. Talvez precise de falar com eles. Ou eles precisem de me dizer alguma
coisa. Mas continuamos obstinados. Eles no seu silêncio; eu na minha surdez. E
assim desabamos no embaraço da saudade e da obstinação. Aquilo de que queria
falar era de árvores no lume brando destes dias, mas já não sei o que hei-de
dizer. Passa por mim, esbaforida, uma mulher. Trauteia uma melodia que
desconheço. Vejo-a a afastar-se e percorrer o grande corredor do Outono onde,
percebo-o bem, abrirá a porta do Inverno. Esta é a minha cidade e ninguém, além
de mim, sabe o seu nome, uma palavra feita de humidade e luz, bela como uma lâmina
a deslizar na rasura da pele.
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
Dogmas
Ao atravessar a cidade, já a tarde tinha declinado na
escuridão da noite, lembrei-me de que amanhã será feriado. E fiquei grato ao
Papa Pio IX e à sua Bula Ineffabilis Deus, onde declara, pronuncia e define a doutrina da Imaculada
Concepção de Maria. Contrariamente ao que ensino aos meus alunos, a quem louvo
os méritos da razão crítica e da submissão do dogma ao colírio da dúvida, há em
mim um certo culto pela dogmática, uma espécie de licença sabática para os devaneios
da razão. E ainda mais maravilhado fico se um dogma tem tanto poder que consegue
roubar os homens aos afazeres que a corveia da necessidade lhes impõe. Meditando
assim no mérito da bula papal, deixo o carro deslizar, enquanto olho para as
iluminações de Natal, onde alguns dos adereços quase fazem lembrar um
crescente. Não chego a ficar perplexo, pois tenho de entrar numa rotunda,
acautelar-me de algum condutor imprevidente, e logo o pensamento me foge em
direcção à bênção, ou à graça, que, no longínquo ano de 1854, Pio IX decidiu
derramar sobre todos nós. Amanhã suspendo a razão e deixo deslizar, com demora,
o dogma pelo meu dia. Assim o espero.
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
Verdade e versos
Olho a rua e sinto toda a verdade que se esconde num verso
de Eugénio de Andrade. “Com o sol a trepar pelas árvores”, escreveu, há muito,
o poeta. E é isso que vejo, nesta manhã, antes de ser tragado pelos monstros
que, dia após dia, devoram a vida dos homens. Olho pela janela e os monstros
desaparecem, refluem para o lago que, subterrâneo, desliza dentro de mim,
tecendo, com zelo, a minha perdição. O sol trepa pelas árvores, penso. Por
vezes, canta nos verdes outras sussurra nos amarelos, mas nunca deixa de trepar
ramos acima, mostrando a verdade de cada árvore na verdade de um verso. Rio-me
ao pensar na mistura de verdade e versos. Deveria seguir a lição de Platão e
expulsar o poeta da cidade, ficaria mais tranquilo. Nada pior do que ficções,
recordo. E nesse instante, entre o verso de Eugénio de Andrade e a indisposição
de Platão para com a poesia, penso que o próprio Platão seria o poeta que
deveria ser expulso da cidade. Assim como o sol trepa pelas árvores e eleva-se
aos céus, também os homens dizem, as mais das vezes, o contrário daquilo que
sentem. Se fossem árvores, não o diriam, e eu não escreveria estas palavras sem
utilidade, nem propósito, nem verdade.
terça-feira, 5 de dezembro de 2017
Castanheiros
Quando cheguei a casa descobri que me tinha esquecido dos
óculos de ler na escola. Nada a fazer senão mergulhar na noite e atravessar a
cidade. Havia muita gente em trânsito. Os carros deslizavam devagar e os peões eram sombras que se desvaneciam nos passeios. Os castanheiros da avenida estão agora lacrimosos.
Quando se aproxima o Natal, descarregam sobre eles uns fios semeados de
pequenas luzes, como se isso os tornasse mais adequados a uma época que não é a
deles. O que vale é que, estóicos, suportam tudo, mesmo os desvarios dos
homens. O seu reino virá mais tarde quando florirem. É isso que lhes importa.
Como os castanheiros, também os homens deveriam apenas preocupar-se com o que lhes
importa, com essa hora em que hão-de florir, especulei ao deixar a avenida.
Como sempre sou dado a ilusões e deixo-me arrastar por analogias cujo sentido
logo me parece bizarro. Por que razão haveria de florescer um ser humano? Nem
flores nem frutos, pensei. E apressei-me para descobrir onde tinha deixado os óculos.
segunda-feira, 4 de dezembro de 2017
Segunda-feira
As segundas-feiras, com o seu excesso de realidade, não
deixam de ser dias enigmáticos. São como uma rede desmedida que captura os
homens no mar do ócio e os descarrega no porão do trabalho, onde prestam o
forçoso tributo à necessidade. Também eu sou levado na rede e, ao cruzar-me com
outras vítimas da grande captura, nunca deixo de me espantar com o seu ar de
felicidade. São múltiplas as causas que movem os homens, penso então, perdido nestas
manhãs de frio cortante. O melhor é entregar a felicidade de cada um àquilo que
o anima e deixar-me de enigmas com temperaturas tão baixas. Metáforas não
aquecem ninguém e, numa sala sombria, haverá gente à minha espera, para que eu
lhe fale de coisas que ninguém quer ouvir e que eu, se não tivesse tanta
propensão para a irrealidade, me absteria de dizer. Não são dias fáceis as
segundas-feiras. E o pior é que não chove.
domingo, 3 de dezembro de 2017
Domingo
Quando, esta manhã, saí de casa assaltou-me uma dúvida. Esta não nasceu da falta de luz. Pelo contrário, havia aquela luz exuberante dos dias frios, uma luz que, ao derramar-se sobre a terra, consegue enganar até os menos incautos, segredando-lhes que não se caminha para o Inverno mas para o Verão. A dúvida, porém, não tinha a ver com a luz terminal do Outono, mas com o domingo, o sétimo dia, aquele que Deus escolheu para descansar do trabalho da criação, tão satisfeito estava, pois tudo o que tinha fabricado era bom. Se Deus, em vez de ter criado o mundo quando o criou, o fizesse hoje, pensei, será que descansaria ao domingo, mesmo que este fosse o sábado dos judeus? Trabalharia ele, o grande operário, por turnos ou cumpriria um horário regular, entrada às oito e saída às dezassete? O sol, apesar do brilho, não me aquece a alma e, ao caminhar, entrego-me a estas meditações plenas de heresia. O melhor seria não as partilhar, mas já é tarde para conseguir uma reputação aceitável. Encontro pessoas endomingadas e outras perdidas na contagem dos dias da semana e penso na minha infância. Nesses dias, tudo era claro. Um domingo era um domingo. Com a mãe, ia à missa. Com o pai, ao futebol. E Deus olhava-nos com benevolência entre a homilia e um penalti falhado. Agora, a mãe assiste à missa na televisão, o pai há muito que decidiu, para minha tristeza, perder os jogos por falta de comparência, e Deus, ora o que se há-de dizer dele? Ficou cego? Cansou-se? Há quem diga que foi de férias e que, endomingados ou não, proclamou que já era tempo de tomarmos conta da nossa vida. O sol, concluí, engana-nos e faz-nos pensar em coisas que não lembram a ninguém.
sábado, 2 de dezembro de 2017
Flatland
De tarde, ao sair de casa, estava um sol frio, um sol natalício.
Não tarda e o Natal está acabado, pensei. Os carros saíam e entravam para o estacionamento
de uma superfície comercial. Perante a azáfama, fiquei a meditar na estranha
designação. Superfície comercial, como se nós, pobres mortais, pelo acto de
comprar e vender ficássemos reduzidos a seres bidimensionais a viver numa
espécie de flatland. E enquanto
caminhava por dentro do frio, pisando, sem piedade, as folhas ressequidas
espalhadas pelo passeio, meditava na mensagem oculta por detrás de tal
designação. As pessoas passavam por mim, indiferentes à minha meditação, e iam
com o rosto cheio de Natal. O mundo está prenhe de coisas improváveis, coisas
como superfícies comerciais ou rostos cheios de Natal, concluí eu, enquanto me
apressava para fugir da noite que o céu, indiferente, anunciava. As tardes
estão muito pequenas, pensei, mas ninguém ouviu os meus pensamentos. Ou talvez
tivessem ouvido e não soubessem o que responder.
sexta-feira, 1 de dezembro de 2017
As folhas mortas
Sento-me sob o sol desmaiado da tarde e deixo que ele desça
sobre mim. Vejo os ramos do arvoredo a balançar, um vento frio toca-os e, uma a
uma, arranca-lhes as folhas secas. Ao fundo, os carros passam devagar, como se
esperassem mais alguma coisa de um dia que nada mais tem para lhes dar, a não ser
a permissão esquiva de passarem lentamente. Fixo-me nas folhas. O vento açoita-as
e elas entregam-se a uma dança acrobática antes de poisarem, secas, leves e
mortas, tão mortas, no chão. E em cada folha, vejo-me a ser arrastado pelo
vento, vejo-me livre em plena queda que me conduz para a terra que há-de ser a
casa da minha eternidade. Dezembro é um mês frio, pensei. Ergui-me e admiti,
após breve exame, que raramente escrevo sobre pessoas. A minha alma pertence ao
deserto, exclamei, mas não havia ninguém para me ouvir.
quinta-feira, 30 de novembro de 2017
Frio
Há pouco, perto de mim, alguém dizia que, na ausência de
chuva, houvesse frio. Ao menos, matava-se a bicharada nos campos, o que ajudaria
a lavoura. E eu fiquei espantado com esta sabedoria que me era servida
inadvertidamente. Para mim o frio é apenas ocasião de vestir uma roupa mais quente
e não uma arma de guerra biológica. E foi assim que enfrentei, na rua, a
frialdade com que a noite tomou conta do dia. Imaginei então campos onde mil
hecatombes de pequenos seres é oficiada pela descida das temperaturas. Se eu
fosse um homem do campo, que coisas não haveria de saber e de transmitir aos
outros. Coisas úteis, sérias, profundas, onde se joga a vida e a morte, e não
frivolidades sobre se o homem possui livre-arbítrio ou se devemos determinar a
moralidade dos nossos actos pelo imperativo categórico ou pelo princípio de
utilidade. Em vez de papéis e gente aborrecida à minha frente, haveria campos
de milho e de trigo, talvez um roseiral de onde colheria as rosas que alguém
espera de mim.
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Ignorância
Nomear as coisas é uma arte de difícil consecução, pensei
hoje ainda a tarde era luminosa. Quantas vezes, neste estranho Outono, vou
pelas ruas e fico espantado com as cores que, aos poucos, tomaram conta das
folhas do arvoredo? E se eu quero dizer esse espanto e partilhar o prazer que vermelhos,
castanhos, ocres, amarelos, violetas ou rosas me deram, a empresa morre de
imediato na impossibilidade de nomear as árvores que suportam ainda nos seus
ramos tais catálogos vivos de cor. Estou-lhes grato, digo de mim para mim, mas
não sei o seu nome e temo que, um dia, elas não me perdoem a ofensa. Juro então
que irei dedicar algumas horas ao reconhecimento das árvores, mas logo penso
que talvez seja tarde, que o meu tempo é mais o do esquecimento que o de
adquirir saber. E assim as árvores, essas que tanto prazer me dão, entram na
noite que é a terra dos não nomeados. Ali são todas iguais, todas árvores, que
se confundem na tonalidade pardacenta da minha ignorância.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
O resto
Há pessoas que têm uma estranha propensão. Escolhem fazer
coisas que sabem ir contra a sua natureza. Penso nisto enquanto oiço o Hilliard Ensemble
a interpretar música de Victoria e de Palestrina e me deixo arrastar,
literalmente, para o paraíso. Conheço alguém que estudou filosofia não porque
se interessasse por argumentos mas porque amava a literatura. Nunca lhe perguntei
a razão de tal comportamento, nem a pessoa esboçou alguma vez uma explicação
para a sua dissonância existencial. Fui anotando, contudo, ao longo dos anos, episódios
desse seu conflito. Um dia, após um concerto em Leiria, deste mesmo Hilliard
Ensemble, onde ouvimos música de Bach, disse-me que fazia mais pela fé um
concerto de Bach do que qualquer argumento sobre a existência de Deus. Objectei
que esses argumentos não pretendiam fomentar a fé mas determinar se é racional
ou não crer em Deus. Olhou-me divertido. A noite, ao contrário da de hoje,
estava amena. A Primavera era quase Verão. Passados alguns instantes,
respondeu, sem tirar os olhos do chão: a racionalidade ou a irracionalidade da
crença, o que tem isso a ver com Deus ou com a sua existência ou inexistência? Bach
sabia que Deus existia e a sua música é a prova disso, o resto... E não
completou a frase.
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
Iluminações
Há dias que algumas ruas da cidade foram tomadas pelas
iluminações natalícias. Atravesso-as atónito, não sabendo o que pensar desta proeza
que todos os anos temos de suportar com benevolência e cuja finalidade não
deixa de ser um enigma. Foi para isto que o filho de Deus escolheu vir ao mundo
na penúria do presépio, pergunto-me, enquanto o carro rola ao sabor do
trânsito. Nos passeios, os peões são sombras que a noite vai apagando. Já nem
um mês falta para a consoada, penso, enquanto se insinua a memória dos que nunca
mais estarão presentes. E uma nostalgia de um Natal autêntico assoma. Um Natal
feito de silêncio e de contenção. Um Natal em que os homens pudessem perceber o
mistério que o envolve e os envolve. Faço uma rotunda, endireito o carro. Um
cão ladra distraído, enquanto um casal de namorados passa envolto na tristeza que
é a sua. Quem quer saber de mistérios? Travo numa passadeira e penso que
deveria fazer o caminho a pé. Encolho os ombros. As iluminações gritam numa
girândola de cores, enquanto um anjo desce e diz-me que, se não apagarem as
luzes, não haverá Natal. Com tanta luz, o Menino recusa-se a nascer. Não deveríamos
tentar os deuses, digo para comigo.
domingo, 26 de novembro de 2017
Modalidades
Por um motivo que não vem ao caso, e estando ocioso, comecei
a interessar-me, ainda que incipientemente, por lógica modal, a qual envolve
proposições onde se afirma a necessidade ou a possibilidade de algo. Estava
assim neste ócio, quando olhei para a rua e vi um sol desmaiado a cair sobre os
prédios exaustos, cujo esboço desliza, como uma sombra delida, ante mim. A luz
da lógica é como um sol exuberante, pensei. Contudo, a vida é sombria e o sol,
por vezes, não tem a luz necessária para a iluminar. E enquanto os pombos
voavam de prédio para prédio e as pessoas, lá em baixo, passavam envoltas no
domingo, lembrei-me de um livro de Milan Kundera, A Arte do Romance. Faz ele notar que o romance moderno é
contemporâneo do nascimento da filosofia moderna. À evidência e certeza
cartesianas, o romance traz-nos aquilo que não é necessário, nem certo e muito
menos evidente. Traz-nos o sombrio e o não racional. Não é o romance filho do
Quixote? Ao ouvir uma sirene, uma dúvida, porém, assaltou-me. Há quem pense que
os romances tratam da possibilidade, que os mundos romanescos são mundos
possíveis. Talvez a lógica modal tenha pregado uma partida à arte do romance, e
a tenha reconduzido, apesar da resistência, ao redil da razão. E perante essa
possibilidade, soltou-se da minha boca a jaculatória: valham-nos os oximoros
dialécticos do Pessoa. Amén.
sábado, 25 de novembro de 2017
A pequena heresiarca
Um drama, e não dos pequenos, aqui por casa. A minha neta
mais nova, perante a tarefa de escrever três frases com a palavra cão,
decidiu, na terceira, inovar e entrar pelo perigoso caminho da heresia. “O cão
tem uma capela na escola e tem Jesus”, escreveu. Como sabemos, o Santo Ofício
não é permissivo e não gosta de inovações. Não se comoveu com a conjunção das
proposições simples, nem com a extensão da salvação aos animais, e, entre
admoestações teológicas e considerações de ordem prática sobre a recepção
escolar da frase, usou da borracha para apagar o perigoso erro. O pior é que a
pequena heresiarca não gostou e decidiu entregar-se, inconsolada, a um choro de
protesto. Persiste em mostrar-se amuada, como se a santa censura lhe tivesse
retirado o maior dos bens, a liberdade de expressão. É assim que, na história,
se formam os grandes revoltados.
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Milongas e chacareras
Enquanto entardecia lugubremente, fui buscar o carro à
oficina. Há ali uma sabedoria que me deixa sempre espantado. Talvez não se
saiba da mecânica do mundo, mas a das máquinas é tanta que nunca deixa de me
maravilhar. Circulo pela cidade, para a ver fenecer na tristeza que é a sua e
recolho-me. Que música, pergunto-me, para o cinzento outonal de uma sexta-feira
à tarde. E deixo-me levar por milongas e
chacareras. Não é que me transfira para a Argentina, mas há nestas melodias
qualquer coisa que me lembram que sou português. E assim fico a saborear esta
descoberta espúria. O dia, acobardado perante as potências das trevas,
retira-se, enquanto a iluminação eléctrica chega em ampolas amareladas, para
que a noite seja menos noite, e uma voz rouca e baixa cante uma chacarera, e tudo siga uma ordem e um
desígnio que, penso-o há muito sem o lastimar, nunca compreenderei. A voz
calou-se e a guitarra cedeu ao silêncio. Os cedros, ali ao fundo, erguem-se
hirtos, ansiosos pelo vento que os há-de vergar. Esperam a noite. Ela virá.
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
Chove
Quando saí da escola, já a noite tinha caído. Não que fosse
tarde, mas porque os dias, vergados aos decretos da astronomia, resolveram
minguar. Chovia. E não há nada como a chuva para lavar as almas. Almas são
coisas que se conspurcam com muita facilidade. E não falo desses pequenos
pecados que levam as pessoas, ainda vivas, às prisões, e aos infernos, se a
morte as leva. Pecar contra o espírito, isso sim, é grave. E haverá maior
pecado contra o espírito do que tentar ensinar metafísica a
adolescentes? Talvez a ética nos prescreva o dever de nos abstermos de tal
desígnio. Hoje acordei voltado para as incompatibilidades. Mas, como se sabe, a
carne é fraca e precisa de se ocupar com alguma coisa ociosa. Saí do edifício
e, no caminho para o carro, senti cada pingo de chuva que caiu sobre mim. A
metafísica ficava lá para trás e pensei, arrastado por um lugar comum: comam
chocolates, comam! Olhem que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
E assim de alma lavada, como se tivesse acabado de me confessar, rasguei o
veludo negro da noite e cheguei, sem estados de alma nem inquietações, a casa.
Chove e isso, por agora, basta.
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
Lítotes e hipérboles
Tenho sempre na secretária um livro que, apesar de
fastidioso, consulto, a mais das vezes ao acaso, para minha instrução. Trata-se
de Elementos de Retórica Literária. Abri-o há pouco e vieram até mim as páginas
que tratam da lítotes e da hipérbole. Estas coisas não interessam a ninguém,
mas eu tenho uma acentuada inclinação por coisas que não interessam a ninguém.
Enrolo-me nelas e, enquanto as pessoas sensatas tratam de coisas que interessam
a alguém, eu fico por aí a cultivar inutilidades. Espero que elas me iluminem e
me contem um qualquer segredo, mas elas são avaras. E estava eu de volta da
hipérbole pura e da hipérbole combinada, a meditar no exagero da sua sovinice,
quando, ao mudar de página, caem umas requisições de livros feitas numa
biblioteca de Lisboa há 20 anos. Não apenas me confirmam a minha obsessão pelo
inútil como me atiram para dentro de um passado que se tornou tão inútil quanto
o meu amor, não pequeno, por lítotes e hipérboles. E chegado aqui, hesito se
fico na contiguidade da metonímia ou se vou à janela ver se chove. De
preferência, hiperbolicamente.
segunda-feira, 20 de novembro de 2017
Queda
Hoje a minha tarde foi ocupada com um intenso trabalho sobre
coisas ociosas. Poderia ter ido passear e ver as folhas mortas que estendem as
suas garras lacrimosas pelos passeios. Teria aprendido bem mais do que aprendi.
A humanidade tem sempre uma enorme capacidade de me decepcionar. Eu sei que os
padrões são altos. Como pode a sabedoria humana competir com o saber que há
numa folha cuja seiva secou e, nessa leveza, se entregou à vertigem do vento e
da gravidade? Não pode, pois não há sabedoria maior do que aquela que nos leva ao transe da queda.
domingo, 19 de novembro de 2017
Silêncio
Os domingos penso-os, muitas vezes, silenciosos. Não basta
que as pessoas deixem, por umas horas, de se entregar ao bulício dos negócios.
É preciso que dentro delas cresça um silêncio que transbordará nas praças e nas
avenidas. Assim, o domingo seria santificado, e tudo teria a marca desse novo
hossana ao que há de mais secreto em cada um. As conversas, os gestos, os
grandes passeios dominicais. Os amantes amar-se-iam dentro do silêncio e o seu
amor ficaria protegido pelo segredo e, desse modo, seria mais forte. Um amor
que transborda para fora do silêncio fenece e, não tarda, passa do alvoroço com
que se ostenta para o declínio que o aguarda. O silêncio, aquele que eu, aos
domingos, penso que eles deveriam conter, é o alicerce que permite ao mundo
persistir, apesar da rudeza do ruído que, até ao domingo, como uma folha morta,
de tudo se desprende.
sexta-feira, 17 de novembro de 2017
Anarquistas
Inadvertidamente, dei por mim a ouvir Les Anarchistes, na voz de Léo Ferré. Que conjunção astral se terá
desenhado para que isso acontecesse, não sei. Os desígnios dos astros são ainda
mais obscuros que os de Deus. A verdade é que lá estava a voz inconfundível do
cantor a prestar tributo aos anarquistas espanhóis. Lembro-me bem daquela
figura vestida de preto, a cantar solitária, num cenário vazio, em concertos
transmitidos pela RTP. Dizia-se na época, coisa que nunca confirmei, que para
além de viver num castelo, Ferré era anarquista. Talvez vivesse e talvez fosse.
Ora os anarquistas são como aqueles clubes de futebol de que toda a gente
gosta, mas que ninguém leva a sério. Por exemplo, simpatizo com o Belenenses e
com a Académica de Coimbra, mas… Com o anarquismo, nem isso. Li Piotr Kropotkin,
as coisas que uma pessoa lê, mas acho que nunca li Mikhail Bakunin. O que li
mesmo foi G. K. Chesterton e a novela O
homem que era quinta-feira. Quinta-feira era um polícia infiltrado numa
terrível organização anarquista. O comité central da organização era composto
por sete membros e cada um tinha por pseudónimo o nome de um dia da semana. Ora
o que quinta-feira vai descobrir é que ele não é o único polícia infiltrado na
tenebrosa organização anarquista. Todos os membros do comité central eram
polícias infiltrados e, tanto quanto me lembro, o domingo acumulava a chefia do
grupo e o da polícia. Para mim, numa noite de sexta-feira, o anarquismo confunde-se
com um livro de Chesterton lido há décadas. Como é possível dizer isto e ser
verdade?
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
O castelo
Às vezes, quando a noite não é propícia para fazer alguma
coisa, acerco-me de uma janela e fico a olhar o velho castelo, agora iluminado
por holofotes que o recortam das trevas, e o vestem de uma modernidade
enigmática que o tornam vivo, embora exilado dos mistérios do tempo que foi o
dele. Vejo apenas duas torres e o pano de muralha correspondente, mas isso
basta-me. E fico ali, a ouvir a noite, quase extasiado, por aquela fortificação
ter conseguido chegar aos dias de hoje, ultrapassando não poucas vicissitudes.
Não é impunemente que se pertence a uma terra com castelo. Fazemos parte
daquelas pedras e elas, em segredo, moldaram-nos o carácter. Há uma longa
história atrás de nós e isso, nestas noites já tocadas pelo frio, é
reconfortante. Não que estas pedras e esta longa história, penso ao olhá-lo,
nos torne melhores do que outros que não pertencem a terras acasteladas. Não
torna, mas nós sabemos que é melhor ter um velho castelo para olhar do que não
ter nenhum.
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
Conspirações
Faz um ror de anos que descobri que as letras dos livros
conspiravam contra mim. Letras que outrora me tinham em alta estima e se
apresentavam perfiladas na sua estatura normal, a partir de certa altura
deixaram de me levar a sério e começaram, com suspeita contumácia, a surgir
disfarçadas de anões. Não cheguei a ficar indignado, mas não gostei da
brincadeira. Não tinha inclinação para ser Branca de Neve, nem idade para ser
desconsiderado no respeito que qualquer letra deve a um ser racional. Pessoa
amiga, porém, olhou para mim, riu-se e acabou por me tranquilizar, dizendo que
o problema estava no meu envelhecimento. Não se coibiu de me fornecer, com detalhes,
a explicação científica, a qual, depois de aceite, acabei por esquecer. Disse
esquecer. E aqui está uma nova conspiração. A memória, que em tempos me fora
fiel, decidiu agora atraiçoar-me, talvez confiante na fraca visão, à minha
frente. Quando paro o carro ao pé de casa, vejo um vizinho solícito a dar-me as
boas tardes e a informar-me que me tinha esquecido das chaves de casa na fechadura
da caixa do correio. Reconstruí a cena. Coloquei a chave na fechadura, abri a
caixa, tirei o correio e aqui há um espaço em branco de algumas horas. Mil agradecimentos
e outros tantos obrigados e vou para casa almoçar. E fui jurando que iria ter
mais cuidado. E nestas juras e promessas lá se foi o tempo. Desci fui para o
carro. Estava lá, mas tinha-me esquecido de o fechar. Eu sei, eu sei. Há uma
explicação científica. Até para isto.
terça-feira, 14 de novembro de 2017
A moral das coisas
Certamente, por distracção minha, nunca tinha atribuído um
valor moral ao ordenamento das coisas mecânicas. Persisti nesta funda
ignorância até há pouco. Tendo o relógio decidido parar, apesar de a pilha, que
o animava nos trabalhos e dias que lhe competiam, ser relativamente nova. Não
me ocorreu que tivesse entrado em greve e dirigi-me a uma relojoaria. A senhora
que me atendeu quis alargar o âmbito dos meus conhecimentos e, apesar do meu
patente desinteresse pela causa da recusa do aparelho em funcionar, chamou o
relojoeiro. Todos os que estudaram filosofia sabem que um relojoeiro está mais
próximo de Deus que qualquer outro mortal. E foi aí que tive a percepção da
ordem moral que rege o mundo dos autómatos. Explicou-me ele que a acumulação de
impurezas no mecanismo conduz a que, para funcionar, este tenha de gastar mais
energia. Logo, as pilhas duram menos. Não quis pormenores sobre as impurezas,
bastou-me o desperdício. Traduzindo isto, aprendi que a impureza, seja ela o
que for, leva à dissipação e, se não se atalhar, pode conduzir mesmo à ruína e
morte do instrumento. Quando saía do estabelecimento, tive de me controlar e
não voltar atrás para perguntar se não seria sensato levar o relógio a um padre
confessor. O melhor é manter as aparências, pensei, e mergulhei no frio que a
noite, ao cair, trazia consigo.
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
Passado
Não sei bem o motivo, mas, ao sair da escola, de uma
daquelas reuniões que marcam o itinerário para nenhures, dei comigo a pensar na
relação com o passado. Não com o meu passado, mas o da história. Quando era
aluno, ali mesmo, naquela escola, a distância histórica para qualquer coisa que
não fosse ontem era incomensurável. Por exemplo, o tempo de Eça de Queiroz
parecia-me inimaginável. Isto para não falar do de Camões. Quanto aos gregos,
esses teriam vivido há tanto, tanto tempo, que talvez nem fossem bem humanos. Como
é possível que hoje fale aos meus alunos dos gregos e das suas obras como se
isso tivesse acontecido ontem? Como é possível que, em algumas décadas, se
tenha dado em mim mudança tão radical? Depois, penso que envelhecer não é
adentrar-se no futuro, mas aproximar-se do passado. Quanto menos futuro temos
maior é o passado que abarcamos, pensei ao fazer a rotunda em direcção à
avenida marginal, onde os castanheiros se perfilam e fazem a contabilidade dos
mortais que por ali passam.
domingo, 12 de novembro de 2017
Tenebrae Responsoria
Medito nas razões para que, nesta noite de domingo, tenha
decidido escutar a meandrosa música de Carlo Gesualdo, o príncipe de Venosa, o
torturado e tortuoso assassino da sua primeira mulher e do amante desta. Oiço Tenebrae Responsoria, o que não deixa de
estar adequado com a minha hora e o espírito do autor. E, no entanto, desta música
desprende-se algo tão luminoso – do mais luminoso que o Renascimento nos
oferece – que consegue rasgar as trevas e dar a ver a vida na sua totalidade,
nessa mistura conflituosa de dia e noite. E pela música, mais uma vez, sou instruído
que a noite contém uma luz bruxuleante, mas que o dia da amanhã também traz em
si a negra noite, como se a vida não fosse mais do que um perpétuo jogo entre
potências que nos ultrapassam e de nós dispõem sem grande respeito pelo nosso
livre-arbítrio.
sábado, 11 de novembro de 2017
Fantasmas
Desloco-me pouco dentro da cidade. Os caminhos que preciso
de percorrer em Torres Novas não o exigem. Esta tarde, porém, depois de ir
visitar a minha mãe, atravessei a ponte do Raro e dei uma volta pelo centro.
Como se tornou hábito, sempre que o faço, desce sobre mim uma melancolia que
nem a luz, ainda tão clara, consegue disfarçar. É como se tivessem roubado o
espírito da velha vila onde cresci. A memória retém imagens de bulício,
cenários de uma vida real marcada pelo ardor com que a esperança traçava um horizonte,
para onde a existência de cada um se dirigia. Agora, mesmo nos melhores
momentos, há uma sensação de tristeza e de abandono. É necessário fazer um
esforço para perceber que as pessoas que avistamos são reais e não meros
simulacros. É um exercício penoso viver entre fantasmas, ser um fantasma entre
fantasmas, pensei, enquanto dirigia o carro para longe daquele espaço onde, há
muito, houve uma vila que transportava, orgulhosa, séculos, talvez milénios de
história.
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
Fluxo
Sexta-feira à noite. Oiço Für Anna Maria, Piano Music, de Arvo Pärt. Deixo-me envolver, mas
logo o vinilo termina e tenho de voltá-lo. O som do vinilo é incomparável, mas
este põe disco, vira disco, muda disco passou de moda. Ou então tornou-se
cansativo, num mundo em que o menor esforço triunfou. O importante, porém, é que
se chegou a sexta-feira. São sempre equívocas as noites de sexta-feira. Parecem
o começo do fim-de-semana, mas, na verdade, são já o anúncio de uma
segunda-feira negra, turbulenta e, como tudo o que é humano, inútil, demasiado
inútil. Por vezes, imagino-me a reter o tempo, a não deixar que os segundos se
escoem. Depois, desisto e entrego-me ao fluxo, ao velho rio onde Heraclito não
se poderia banhar duas vezes na mesma água. Num ponto do rio, não sei onde,
está a minha morte. Espera-me. O melhor é deixar-me ir no Spiegel im Spiegel, de Pärt, como quem é arrastado pela torrente indomada
do tempo. Sexta-feira à noite. O sábado é já uma promessa, uma ameaça no
horizonte.
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
Paradoxos e mistérios
Depois de um dia excessivo que se esvaiu entre reuniões e o
magno problema do livre-arbítrio, dou comigo, quando, noite cerrada, atravesso
a cidade em direcção a casa, a pensar, movido por um interesse recente, no
chamado paradoxo da pedra. Será possível Deus criar uma pedra que nem Ele
consiga erguer? Se não conseguir criar essa pedra, então não é omnipotente. Mas
se conseguir criá-la, também não é omnipotente pois não será capaz de a levantar.
Em vez de tentar descobrir a solução do paradoxo, medito, ao subir o viaduto,
ali mesmo onde o rio é mais frio, que os homens, neste particular, são muito menos
problemáticos que Deus. Têm tendência a criar pedras que, em pouco tempo, nem
uma multidão erguerá. Livres do atributo da omnipotência, não são enredados em
paradoxos. Contudo não deixa de ser, para mim, um mistério a propensão
humana para criar aquilo que o há-de esmagar. O dia pesa-me toneladas e a noite
promete não aliviar o peso que desaba sobre os meus ombros.
quarta-feira, 8 de novembro de 2017
Texugo
Há muitos anos, conheci alguém que tinha por máxima de vida
preservar-se do contacto com o rebanho. Era uma pessoa discreta e, por alguma
razão que eu nunca quis saber, deixou que o aforismo se lhe soltasse da boca
num ambiente relativamente público. Nesse momento dei pela sua existência. Foi
o princípio de uma longa amizade só interrompida pela morte. O rebanho, dizia,
não cheira apenas mal. Contamina-nos com o seu cheiro. E logo acrescentava que
não há coisa pior que o mau odor. Um dia, numa conversa ocasional cujo assunto
esqueci, acrescentou à sua tese uma taxinomia humana. Há quatro tipo de
pessoas, afirmou, enquanto olhava para lá da janela. As que fazem parte do
rebanho, as que são cães do rebanho, os pastores do rebanho e os inúteis, os
que não sabem balir, nem ladrar, nem possuem voz de comando ou propensão para
homilia. Esses tornam-se suspeitos e a única solução que possuem, para que
possam preservar a vida, é tornarem-se texugos. Só o mau cheiro pode combater o
mau cheiro, acrescentou não sem deixar escapar uma gargalhada.
terça-feira, 7 de novembro de 2017
Desejo
Há pouco, ainda havia luz, passei por uma mulher encostada à
parede de um prédio quase pegado àquele onde moro. As costas hirtas pareciam
suster o monstro de cimento, mas a cabeça inclinava-se para o chão. Os olhos, fascinados
pelo rodopiar das folhas que o Outono rouba ao arvoredo, não se desprendiam do
espectáculo. Tive vontade de parar e desejei ser arrastado para dentro daquele
olhar. Havia nele uma tal melancolia que quase me comovi. Apressei o passo e já
longe voltei-me para trás. As folhas rodopiavam e na parede havia então uma
sombra, o buraco vazio de um desejo por realizar.
segunda-feira, 6 de novembro de 2017
Desassossego
São longas, muito longas, as segundas-feiras. Chega a noite
e sento-me sem saber bem o que fazer do que ainda tenho para acabar. Logo,
porém, esqueço os trabalhos e os dia. Um acaso, e eu sou muito atento aos
acasos, influência do incerto princípio da incerteza, de Heisenberg,
conduziu-me a um texto sobre o escritor norueguês Kejell Askildsen, cuja obra
faz parte do infinito oceano da minha ignorância. Diz ele que escreve histórias
para desassossegar os leitores. Compreendo-o, mas tenho uma funda dúvida sobre
se os leitores querem ser desassossegados. Leitores desses são uma raridade. Há
alguns, claro, que falam muito em desassossego, mas, por norma, gostam que
sejam os outros a serem desassossegados. Eles, apesar da retórica, querem ser
confirmados nas suas crenças. O desassossego é sempre algo que o outro precisa.
São coisas destas que me dão para pensar às segundas-feiras depois de jantar,
quando me fecho no sossego do escritório e oiço a noite ranger nos gonzos da
terra.
domingo, 5 de novembro de 2017
Domingo
Sem interlúdio, transitámos de um Verão agreste, pesado e funesto
para o Verão de S. Martinho. Imagino que ali ao lado, na Golegã, a azáfama seja
grande. É um mundo que nunca exerceu qualquer fascínio sobre mim. Por vezes,
fazia visitas etnográficas, mas a etnografia deixou de me interessar há muito.
Sou um péssimo ribatejano, confesso. Prefiro ficar a ver o sol a iluminar o
silêncio da manhã e a ramagem das árvores a ser sacudida por uma brisa ligeira
que se desprende da Serra de Aire. Há mais verdade no vento que desce da serra
do que no trote dos cavalos num concurso hípico. E rio-me deste pensamento absurdo. Uma sirene interrompe-me o devaneio, e logo avisto uma ambulância a
correr para o hospital. Também eu, um dia qualquer, posso ir de urgência para lá.
Encolho os ombros. Poucas são as coisas que estão na mão dos mortais e mesmo
essas são incertas. A tarde chegou mansa e recordou-me que há muitos, muito
anos, a esta hora, estaria na Igreja de S. Pedro, na missa do meio-dia. Talvez
o mundo, naqueles dias, fosse mais perfeito. Ou talvez fosse igual ao de hoje.
Eu é que perdi a paciência para a homilia.
sábado, 4 de novembro de 2017
Um raga
Por vezes, aventuro-me na música erudita, digamos assim, de
tradições não ocidentais. A que mais me fascina é a japonesa. Hoje, porém, não
sei se devido à combinação do sol e das nuvens em tarde de sábado, ou se por
ter andado, há pouco, a observar as folhas avermelhadas pelo Outono das árvores
da avenida, acabei por escolher um raga indiano. Na raiz indo-europeia da
palavra raga está a ideia de colorir, descubro-o agora numa consulta na
internet. É a mesma raiz da palavra inglesa red e por certo da alemã rot ou da
francesa rouge. O raga, enquanto peça musical, pretende colorir a mente,
retirá-la da abstracção dos conceitos e fazê-la o centro da vida. A experiência
de escuta, contudo, não é, de início, a de uma explosão vital como, por
exemplo, na Sagração da Primavera de Stravinsky. Pelo contrário, o espírito
que escuta volta-se para si, concentra-se na sua solidão, abstrai-se da
exterioridade. É um espírito devocional. Só depois, de forma gradual mas
vagarosa, a música conduz à exteriorização, à manifestação no mundo, da vida
exuberante, e o corpo quase é movido pela vento que sopra da música. De súbito,
percebo que o sol deste sábado ou as folhas avermelhadas do Outono, também
eles, nascem desse espírito que sopra do raga que oiço. Lá fora, um vento
empurra as folhas e fá-las rodopiar, rodopiar, rodopiar e, entre mim e as
folhas que rodopiam há uma funda comunhão.
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
O baile
Uma loja de roupa anuncia-me, por sms, que sente a minha falta. Apetece-me responder que eu não, não sinto, de todo, a minha falta. Contenho-me. Ainda não me habituei a estes anoiteceres temporãos. Tenho de vigiar o humor. Lá dentro, as minhas netas contendem sobre quem será a princesa e quem será a aia. Enquanto me entretenho com uma broa remanescente dos Santos, espero que o litígio se prolongue. Quando terminar, está-me reservado o papel de acompanhar a princesa ao baile. Com o tempo que está, não me apetece calcorrear a cidade numa velha carruagem. E a noite, mais negra e mais densa, desce sem piedade sobre o dia. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam, disse João. Fico a meditar na incompreensão das trevas perante a luminosidade da luz. A demanda parece resolvida. Não tarda, irrompem pelo escritório. O melhor é ir preparar-me. Será que tenho roupa para o evento?
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
Fiéis Defuntos
Não ontem, mas hoje, sim, é o dia de Fiéis Defuntos. Consta
que a tradição se teria iniciado no século II. Os fiéis oravam pelos mártires.
Mais tarde, pelo século V, a Igreja dedicou um dia para que se rezasse por
todos os mortos, por aqueles de que ninguém se lembrava já. Este exercício
mnemónico fascina-me, como se ele fosse o resultado de um saber arcaico, uma
sabedoria que não desiste de nos recordar que somos, todos nós, devedores de
uma longa tradição genética. Sem cada um desses membros esquecidos da cadeia
que nos liga ao início da vida, não existiríamos. Haja então um dia em que os
possamos recordar, trazê-los ao coração. Não comprei crisântemos e não irei ao
cemitério. Nunca o faço nestes dias. Trago, porém, os meus mortos comigo.
Aqueles que conheci e amei e aqueles que teria amado se me tivessem dado essa
possibilidade. Por vezes, dou comigo a falar com um ou outro dos meus avôs, os
quais morreram muito antes que qualquer um dos seus netos tivesse nascido. Apesar
disso, compreendemo-nos muito bem. Eles, como eu, sabem o quanto lhes devo.
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
Banalidades
Leio: a morte está cada vez mais banalizada. Assinto sem
dificuldade. Quanto mais banalizada estiver a vida, mais banalizada estará a
morte. Nunca a banalização da morte ultrapassará a banalização da vida.
Todos-os-Santos
Comi há pouco uma broa, daquelas broas de azeite que só em
terras de olival existem. E ela instalou-me, como por milagre, em pleno dia de
Todos-os-Santos, fez-me mesmo crer que o Outono chegara. O dia, tomado pelo
revoltear do vento, a chamar chuva, e pela luz desmaiada, confirma-o. Em
criança, nunca participei nessas deambulações, em grupo, de porta em porta, a
que aqui chamam “ir aos bolinhos” e em outros lados “pão por Deus”. Não lastimo
esse espaço em branco no currículo. Por certo, os meus pais não favoreciam a
aventura, mas a causa primeira, vejo-o agora, estaria na minha pouca vontade
para o fazer. Tirando uma época exígua em que, tomado pela febre do tempo,
julguei que a salvação do mundo estaria na força do grupo, a minha vida
caminhou sempre em direcção contrária. Por isso estranhei há pouco, vinda de
não sei bem onde, a voz de alguém a trautear “canta amigo canta / vem cantar a
nossa canção / tu sozinho não és nada /juntos temos o mundo na mão”. Nunca
percebi para que haveria de querer ter o mundo na mão. E logo me recolhi em
Todos-os-Santos, que, apesar da sua natureza colectiva, faz nascer em mim o
desejo de uma longa solidão.
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