domingo, 27 de março de 2022

Deixem as horas em paz

Chegámos ao último domingo de Março. O mês galopou pela planície do ano e prepara-se para acabar. A vida dos homens é assim, um galope desenfreado entre dois abismos. Como todos os abismos, estes são secretos e nunca se sabe o que está neles. De um sai-se puro, inocente e ingénuo. No outro cai-se, embora as virtudes com que se tinha nascido tenham sido exauridas no trajecto, e vai-se para o abismo final com pouca pureza, inocência e ingenuidade. As mudanças horárias perturbam-me sempre. Já era tempo de acabarem com esta arbitrariedade, com este tira hora, põe hora. Se eu fosse dado à iniciativa, um empreendedor, na linguagem de hoje, haveria de criar um movimento, talvez uma organização não governamental, para exigir que deixem as horas em paz. O que me vale é que não sou dado a iniciativas e, apesar de resmungar com a desfaçatez da gestão política das horas, acomodo-me, resigno-me a este domingo triste e de hora roubada. O dia está macambúzio. Eis uma palavra que não tenho o hábito de usar. Poderia ter escrito soturno, triste, taciturno. Poderia mesmo escrever que o dia está sorumbático, mas não. Escrevi macambúzio. Não faço ideia a onde se terá ido buscar tal palavra. Seja como for, é assim que o dia está. E eu, se não me acautelo, fico como ele. Tudo isto porque me roubaram uma hora ao domingo, que eventualmente será devolvida lá mais para a frente, mas ninguém paga juros de mora. A Quaresma avança e, não tarda, chega ao porto sereno da Páscoa.

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