domingo, 20 de março de 2022

Tempo de Papagenos

Começou maldisposta a Primavera. Há pouco fui a uma aldeia aqui perto comprar laranjas. Por vezes, tenho umas quedas no bucolismo e imagino que, consumindo produtos da zona, estarei a animar a economia local. Pura fantasia. Comentei que o céu estava muito escuro e recebi como resposta da vendedora de que iria chover lá para as cinco horas. É o que dizem, acrescentou, não fosse eu pensar que ela era uma profetiza de outros tempos. Profetiza ou não, a realidade é que chove e estamos em cima das cinco da tarde. A indisposição da Primavera, tema inicial do escrito, talvez se deva a ela rejeitar a realidade de já ter nascido, de estar numa atitude de negação. Imagino que preferisse ficar onde estava por mais uns dias, até para ver como param as modas por estes lugares. O pior foi o Inverno ter-se recusado a continuar em funções e, para não haver um vácuo estacional, a Primavera lá chegou, mas tristonha, zangada, sem aquela exuberância que toca nos corações para os incendiar, para que os Papagenos deste mundo encontrem as suas Papagenas e, sobre a Terra, existam muitos Papageninhos e Papageninhas, uma grande família de passarinheiros que trabalhem nas florestas da Rainha da Noite, essa malvada. Escuto um Stabat Mater Dolorosa, de Orlando de Lassus, interpretado pelo The Hilliard Ensemble. Acho estas peças da Renascença mais adequadas ao dia de hoje do que a maçónica Flauta Mágica, de Mozart, de onde veio a família dos Papagenos. O domingo entardece. Quando dei a volta pela cidade, quase não se via ninguém, tudo recolhido ou, o mais certo, eu vivo numa cidade fantasma, de onde os habitantes foram evacuados, mesmo sem qualquer ameaça de guerra. Talvez por precaução, pois nunca se sabe do que é capaz a Rainha da Noite.

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