quinta-feira, 24 de março de 2022

Ninguém

As coisas conspiram para me levarem a falar do tempo. A barra de ferramentas do Windows mostra-me um guarda-chuva azul aberto. Segue-se-lhe a seguinte informação: Chuva em breve. Por mais que eu a queira evitar, a questão persegue-me. No entanto, eu não sei se a informação é uma descrição de um estado real do mundo, embora futuro, ou apenas a manifestação de um desejo por parte do software que gere estas coisas. Se for uma descrição do estado do mundo, preocupa-me a imprecisão do ‘em breve’. Quantos minutos ou horas representará? Mudando de assunto. Tenho aberto à minha frente um livro de Herberto Helder. O poema começa assim: Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Ao ler isto, estremeci. Descobri que chego a esquecer-me do que vou dizer quando falo com alguém. Uma frase que deveria ser dita daí a uns segundos – em breve – desaparece-me da mente. Talvez eu não devesse dizer mente, mas consciência. Mente tem uma tonalidade anglo-saxónica. Por lá, eles têm mentes. Na Europa continental, temos consciência. Portanto, as frases que se me varrem, varrem-se-me da consciência e não da mente. Isto significa que estou com contínua propensão para a perda de consciência. O poema de que falei, depois de se expandir, como um exército invasor, por quatro páginas e meia acaba com o seguinte verso: A sonhar. Ocorreu-me que poderíamos elidir todos os outros versos e ficar apenas com o primeiro e o último: Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. / A sonhar. Esta nova composição dá-me outra perspectiva do meu estado. É a sonhar que a minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Talvez tudo isto não passe um devaneio onírico, ou talvez esteja a falar de esquecimento porque hoje fui visitar alguém que se esqueceu de que sou o seu próprio filho e me perguntou várias quem sou. Suspeito que estou já reduzido à condição do Romeiro, do Frei Luís de Sousa. Sou ninguém, embora isso não seja compatível com o ensinamento cartesiano de que sou uma coisa pensante, uma alma. Talvez uma coisa pensante seja um ninguém, um sujeito despido de biografia. Um ser de papel. Agora vou videoconferenciar.

Sem comentários:

Enviar um comentário