Quase noite. É nisto que dá a passagem do tempo. Caso não passasse, não haveria lugar para este tipo de constatações. A chuva amainou, tornou-se um animal dócil, contrariamente à minha faringe que ainda não dobrou a cerviz aos ataques que tem sofrido. Como é que nós, desventurados humanos, queremos afirmar a nossa autonomia de seres que dão a si mesmo a sua própria lei, como defendia aquele senhor que nasceu, viveu e morreu em Konigsberg, se nem a uma simples faringe conseguimos impor a ordem, deixando que ela deambule feérica por aí e se entregue a inflamações despropositadas? Uma completa autonomia moral exigiria um domínio total do corpo, mas este recusa-se e, de múltiplas maneiras sempre a abarrotar das mais tenazes insídias, entrega-se a perigosos devaneios, a que nós, sempre com a necessidade de a tudo dar nome para a tudo catalogar, chamamos prazer e dor. É possível que exista mesmo um prazer específico de organizar catálogos e de se entregar a taxinomias. Pôr por classes terá um dia fascinado algum dos nossos antepassados que fez disso uma adicção e que transmitiu o vício à descendência. O que acontece é que outros vícios do corpo acabam por desmantelar o edifício classificatório, mas como a inclinação se tornou genética, haverá sempre alguém disposto a empreender a reconstrução dos sistemas classificatórios. Imagino que a luta de classes seja esse esforço para classificar e reclassificar as coisas que caem no horizonte humano. Em resumo, um problema de taxinomias. Ainda posso dizer quase noite. Eis uma frase capturada por essa estranha classe de palavras que são os advérbios, que se recusam a variar em género e número. O facto de não variarem em género significará que são assexuados ou que contêm em si os dois sexos? Como se vê, existem problemas prementes e não há quem lhes preste atenção.
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