Irrita-me o rato. Eis um mau começo, uma aliteração em texto prosaico. A verdade, todavia, é essa . O rato decidiu, sem me pedir consentimento, pôr de lado a função de scroll ou, para estar mais de acordo com os tempos actuais, descontinuou-a. E se há coisa útil para percorrer as páginas num monitor é a dita função. Com isto se prova que a autonomia humana está constantemente ameaçada pela autonomia dos objectos que os próprios homens criam para aumentar a sua autonomia. Os homens inventam-nos confiados na sua obediência e passividade de meras coisas, mas logo descobrem que afinal não são coisas, mas entes dotados de vontade. Frustrados, os homens desculpam-se catalogando a recusa em funcionar como avaria ou acidente. Tudo isto por causa do scroll do rato. Tenho de ir comprar outro e despedir este. Uma das odes de Horácio começa assim: Nem sempre das nuvens corre a chuva / sobre os campos agrestes, nem continuamente / inconstantes tempestades o Mar Cáspio / fustigam, nem, na costa arménia, // amigo Válgio, se acumula todos os meses / o imóvel gelo, e nem sempre os carvalhais de Gargano / pelos Áquilos são assolados, /nem o freixo perde as suas folhas. Ora, o nem sempre com que o poema abre traz com ele uma promessa, pois nem sempre o mal reinará. Toda a promessa, porém, contém uma ameaça, pois nem sempre ao bem sucederá o bem. Como certos medicamentos úteis, também o bem sofre de descontinuações. Não consigo scrollar no texto, o que não será muito grave, considerando as inúmeras coisas que não consigo fazer. Redime-me o dia as inconstantes tempestades, o imóvel gelo, os carvalhais de Gargano. Também dessas coisas pode nascer a redenção.
https://m.youtube.com/watch?v=vYtv0YryUME
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