quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Vanitas vanitatum

Chegou a noite com o seu silêncio. A praceta está vazia, o café fechado, os alunos do Centro de Línguas foram para casa. Agora, é o tempo das sombras, a hora dos murmúrios, o instante em que a realidade toma outra direcção, mais secreta, grávida de enigmas. Mais logo terei de sair, para um daqueles jantares que a época natalícia arrasta, como se as pessoas que durante um ano inteiro praticamente se ignoram fossem uma grande família, partilhassem entre si alguma coisa de essencial. Durante muito tempo resisti a este tipo de festividades, mas com o passar dos anos fui cedendo ao espírito da época ou ao amolecimento dos instintos. Bem gostaria de ter aventuras para contar, mas nada me sucedeu digno de nota, a não ser ter caído ao subir umas escadas. Tropecei num degrau e lá fui com joelhos e mãos ao chão. Descobri que ainda dou demasiada importância à minha pessoa, pois antes de me preocupar se me doía alguma coisa, fui ver se ninguém tinha assistido a esta cena humilhante. Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Tranquilizado, dei atenção aos joelhos, doíam, mas pouco, coisa que logo passou. Tenho de começar a subir escadas amparado ao corrimão. Estes dias, diga-se, têm sido dados a moléstias. Consegui combinar uma faringite com uma conjuntivite. Tive de fazer a via sacra dos consultórios. Um para mostrar os olhos, outro para deixar que me espreitassem a garganta. Agora que penso nisso, as duas médicas que me viram ainda são menos novas do que eu. Uma delas pouco usa o computador e prefere escrever com uma caneta de tinta permanente, uma Montblanc. Passa uma receita ou faz uma requisição de análises ou exames manualmente. Depois, usa uma folha branca como mata-borrão, já que os autênticos mata-borrões desapareceram. Devem ter sido descontinuados. Eu que comecei a escrever no tempo dos mata-borrões também tenho uma Montblanc, mas não sei para que me serve. Escrevo em teclados, reais ou virtuais, e quando tenho de escrever manualmente, coisa rara, uso o que estiver à mão. Não tenho nostalgia do arranhar, mesmo que suave e delicado, de um aparo sobre o papel.

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