sexta-feira, 22 de março de 2024

Da necessidade da alma

Saí de casa e estava uma atmosfera irrespirável. Os carros cobertos de poeira pareciam ter saído do deserto. Aconselha-se a não fazer exercício ao ar livre. Talvez se devesse aconselhar a não fazer exercício de todo. Que os atletas dêem, estes dias, descanso ao corpo, para evitar que as garras acutilantes do cansaço o façam cair. Para quer serve um corpo caído, mesmo a uma alma elevada? Nada, por certo. Também é verdade que elevação de alma é mercadoria escassa. A escassez, porém, não lhe aumentou o valor, pois a procura é quase nula. Quem aspira a ter elevação de alma? Aliás, para não se ter má consciência por andar com alma por terra, descobriu-se que o melhor era negar a existência de almas. Se não existem almas, não se pode sentir qualquer infracção moral. Não se discute, por aqui, se existem ou não almas, um assunto metafísico que me faz desejar chocolates, o que me estragaria a dieta. Discute-se o ardil de negar a sua existência para se poder suportar a baixeza existencial. Vejamos as coisas do seguinte ponto de vista. No dia em que é executado, Sócrates discute com os amigos a imortalidade da alma. A sua crença na imortalidade ajudava-o no transe a que iria ser sujeito. Bebeu o veneno com a alegria de quem ia para uma festa há muito desejada. Isto, porém, é o menos interessante. O mais interessante é o uso da alma, sendo ela imortal, para dizer que as pessoas nesta vida se devem portar bem, pois caso não o façam são terríveis os castigos reservados à sua alma no além. Mesmo que não exista uma alma imortal, a crença nela tem um sentido cívico fundamental. Proclamar a sua não existência, mesmo que isso seja verdade, é abrir a porta para o pior. Uma pessoa começa a falar de poeiras e acaba na imortalidade da alma e da sua magna utilidade para uma vida boa. Sinal de aproximação do fim-de-semana.

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