sábado, 23 de março de 2024

Orquídeas e poeiras

De manhã, ao chegar perto do friso das orquídeas descobri a primeira florida, apenas uma flor, mas outros botões estão prestes a abrir-se. Cada uma tem o seu ritmo. Há algumas muito atrasadas, talvez nem venham a florir este ano, mas estou a especular. Constou-me, numa conversa aqui em casa, que não gostam de ser mudadas de vaso. Quando isso acontece, ressentem-se e não florescem ou fazem-no tardiamente. Isto prova que também no reino vegetal os indivíduos têm a sua peculiaridade, talvez um carácter, senão mesmo uma personalidade. Isso, protestará o leitor, significa dizer que os seres do mundo vegetal são pessoas, o que infringe a nossa intuição do que é uma pessoa. Ora, pode-se argumentar que não é pelo facto de algo infringir as nossas intuições que esse algo deixa de ser o que é. A crença de que a Terra não era o centro do universo infringia a intuição dos seres humanos e, no entanto, ela não estava mesmo no centro do universo. Poder-se-á, por outro lado, alegar que para algo ser uma pessoa terá de ter a capacidade para determinar os seus próprios fins e que as orquídeas recebem a sua finalidade da natureza e não de si próprias. Isto, porém, é pressupor que eu, ao dar a mim mesmo os meus próprios fins, o faço independentemente da minha natureza, que existe uma não coincidência entre mim, enquanto ser natural, e mim, enquanto ser que se dá os seus fins. Está na natureza que eu sou escolher os fins que persigo na vida. Posso estender este raciocínio às orquídeas e afirmar que elas também se dão a si mesmas os seus fins, mesmo que eu não perceba. Logo, serão pessoas e como tal devem ser tratadas. As poeiras vindas de África estão-me a afectar mais do que pensava. Caso estivesse um dia normal, jamais me ocorreriam estas meditações que anulam a distância que há entre mim e os outros indivíduos do reino da vida, como se pertencêssemos todos a uma fraternidade de seres vivos, apesar de uma parte deles se alimentar da outra. Vou contemplar a cor do céu para tentar descortinar a dimensão da invasão a que estamos sujeitos, quanto tempo estaremos cercadas pelas poeiras sarracenas.

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