Antes que a tarde chegasse à fase crepuscular, fui caminhar. Os últimos tempos não têm sido propícios para o exercício, mas hoje inflecti a tendência e retomei a prática. Isto, porém, não passa de uma mera expectativa, ainda por cima fundada num desejo que já quase não deseja. Sim, pôr-me a caminhar exige de mim um certo esforço para me arrancar da cadeira onde estou sentado e da casa onde me acolho. Há quem tenha prazer em caminhar. Eu não o tenho. Faço-o, quando faço, por dever. Kant se me lesse, torceria de imediato o nariz, um nariz adaptado para torções, diga-se, e diria que não cumpro o dever de caminhar por amor ao dever, mas motivado por um interesse egoísta: a esperança de que o acto de andar a calcorrear ruas me evite uma presença mais assídua nas salas de espera dos consultórios médicos. Uma acção conforme ao dever, mas não feita por dever, diria ele. Eu retorquiria que queria que ele fosse dar uma volta à rotunda do relógio, ele que era tão metódico nas suas caminhadas que as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem. Ele haveria de se rir da minha resposta e responderia, para me tranquilizar a consciência, que estava a brincar; a minha caminhada tem um real valor moral, juraria. Se tudo em mim me impele a ficar sentado e mesmo assim vou caminhar para preservar a saúde, então caminhar não é um acto egoísta. E, com o seu ar de professor prussiano, acrescentaria: a caminhada tem valor moral pois visa aliviar os outros de um eventual peso que eu lhes possa causar por não me cuidar e cair nas garras da doença. Esta conversa com Kant indignou-me. Estou a falar a sério. Então, não é que ele acha que é sempre moralmente incorrecto mentir e não se privou, na primeira avaliação que fez da minha caminhada, de me pregar uma mentira, retirando valor moral àquilo que o tinha? Também um filósofo chega à fase crepuscular: em vez de trazer a luz, traz a sombria sombra.
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