segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Relato de um cérebro

Passei pelo friso das orquídeas e descobri que algumas estão perto da floração. Presumo que seja uma anunciação da Primavera, de uma Primavera temporã. Tem estado pouco frio aqui por casa. A temperatura raramente cai de modo a pôr o aquecimento central a trabalhar. Há uns anos a imperatividade de aquecimento começava pelo S. Martinho, mas nos últimos tempos só entre o Natal e o Ano Novo é que começa a ser necessário aquecer a casa, tornando-se a precisão muito intermitente logo em Fevereiro. As causas disto não as conheço. Talvez a casa esteja menos vulnerável aos frios da rua; talvez os frios da rua sejam menos verrumantes. Não faço ideia porque estou a falar destas coisas. Talvez para provar que a vida, a minha, é feita de trivialidades. Se é assim, então estou a cumprir um papel que Dominique Rabaté, um professor de literatura francesa moderna e contemporânea, vê em alguns escritores: O seu papel não é o do romancista, mas o do escrivão da realidade, garantindo com a sua experiência a veracidade do que relata. É isto que eu sou: um escrivão da realidade. Dito de outro modo, um burocrata da escrita, mas, ao contrário do que diz Rabaté, a minha experiência não garante a veracidade do que relato. Que garantias terá, quem ler isto, que algumas orquídeas estão perto de se abrirem em flor? Que garantias haverá mesmo de que existe aqui um friso de orquídeas, embora escreva sobre ele há anos? Nenhumas. Eu posso ser um escrivão da realidade, um burocrata minucioso da escrita, mas a realidade escapar-se-me sempre e aquilo que eu escrevo ser apenas fruto de uma fantasia. É possível que eu não passe de um cérebro numa tina, que é alimentado quimicamente e constrói imagens, a que chamo realidade, através de impulsos electromagnéticos que estimulam partes desse cérebro, a que me reduzo. Ora, o leitor dirá que essa história do cérebro na tina não passa de uma conhecida experiência de pensamento para fomentar debates de incidência epistemológica ou ontológica. É uma opinião, estimável e informada, mas que não desmente a hipótese de eu não passar de um cérebro numa tina, ligado a um computador que escreve aquilo que aqui está através de impulsos electromagnéticos provenientes daquela massa desagradável que existe dentro da caixa craniana dos seres humanos.

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