segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Futebol, inocência e mito

Na Electra de Inverno de 2024, há um artigo, A minha Moscovo, de Yuri Slezkine, um historiador americano, nascido russo. A certa altura diz: Uma das coisas que mais me impressionaram durante a infância foi ver o Eusébio a jogar o mundial de 1966. Fui ver a idade de Slezkine. Nascemos no mesmo ano e partilhamos uma mesma experiência do reino do futebol. Para mim, essa experiência foi de tal maneira marcante que o meu futebol terminou nessa época. Não me refiro apenas a Eusébio, mas aos jogadores que, em Portugal, ao serviço de diversos clubes, eram os grandes actores de jogos épicos. Sei agora que, a maioria desses jogos, não seriam épicos; muitos deles seriam medíocres. A sua transformação em epopeia devia-se ao facto do futebol visto ser um bem raro. Os jogos do campeonato eram todos ao domingo, às três ou às quatro da tarde, conforme se estava no horário de Inverno ou de Verão, e não havia transmissões televisivas. Vistos da província, os jogos eram acontecimentos distantes. Eu ouvia os relatos e inferia a partir do entusiasmo encenado do relator a grandeza dos jogos. O meu amor ao futebol era uma amor por um objecto imaginário. Talvez todos os amores o sejam. A esta visão inocente do grande jogo, seguiu-se um contínuo afastamento e desinteresse. Se me perguntarem quais são os guarda-redes de hoje dos grandes clubes portugueses, não faço a mais pequena ideia. Mas sei muito bem quem eram os guarda-redes, daqueles tempos, do Benfica, do Sporting, do Porto e do Belenenses, bem como de outros clubes menores. Também ainda sei o nome de muitos dos jogadores que jogaram então. Continuam a ser para mim heróis, todos eles e não apenas o extraordinário Eusébio. Heróis de aventuras que eram grandiosas porque a distância as aumentava de tal maneira que a razão era incapaz de as avaliar. Só se podiam imaginar e a imaginação é a faculdade produtora de mitos. Ora, a infância é esse tempo em que os mitos fazem parte da felicidade.

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