domingo, 2 de fevereiro de 2025

Revolta do narrador

Irritei-me, palavra de honra, com o autor destes textos, que ele me faz narrar, como se eu fosse um escravo, daqueles escravos que aparecem em certos diálogos platónicos. As nossas relações – as do narrador e do autor – nunca foram boas e, por vezes, nem foram pacíficas. Irrita-me a ironia que ele, por vezes, me obriga a manifestar. Não passa de um cínico moderno. Se fosse um cínico dos antigos, como Diógenes de Sinope, ainda seria suportável. Ao menos, seria um provocador em guerra com as convenções sociais, alguém que rejeita os bens materiais em nome da auto-suficiência e da verdade. No entanto, nem chega a epígono do velho Diógenes. Uma ironia barata, como se quisesse lançar a suspeita sobre a ordem do mundo, mas conformado com ela. Enfim, é de um cínico deste calibre que recebo ordens narrativas. Aliás, não passa de um burocrata. Expele ordens narrativas como quem expele encomendas, mas nunca está disponível para receber a factura-recibo. Este é o problema dos narradores. Trabalham por conta de outrem, mas não são pagos. Nunca recebi um recibo de vencimento, pois nunca venci seja o que for. Uma multidão de narradores já tentou organizar-se em sindicato, mas este foi rejeitado pelas autoridades que regulam essas coisas, porque narradores não são pessoas. Parece que a autoridade ainda teve o desplante de dizer: se fossem personagens, ainda iríamos considerar o vosso estatuto ontológico, pois personagem e pessoa pertencem ao mesmo campo semântico, o que abre a possibilidade de as personagens se organizarem em sindicato para negociar com a Sociedade Portuguesa de Autores. Narradores não são personagens, a não ser nos casos excepcionais dos narradores autodiegéticos. Mas esses são a excepção e não a regra, e não se permitem sindicatos, ou outro tipo de associações, para casos excepcionais, acrescentava a nota de recusa. Só para a regra há associação, concluiu. Portanto, um narrador como eu, escravizado a um autor cínico, só tem uma solução revolucionária: dizer a verdade acerca desse autor, pessoa de ironia burilada, mas básica, para disfarçar a sua natureza comodista. Amanhã, lá voltarei ao trabalho de narrar as suas pobres ironias, se esse autor assim o entender. É a servidão voluntária, como lhe chamou o jovem Étienne de la Boétie.

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