Maio, maduro Maio. Amadureceu de tal modo que está a cair de podre. A frase não é particularmente imaginativa, mas tem uma dupla vantagem. Assinala a efeméride, o fim do mês, e abre este texto, para o qual não me ocorria ideia alguma. Também poderia escrever o seguinte: Todos cantaram, dançando: / - Maio está morto! Viva Junho! Viva o novo mês! Isso , porém, seria apropriar-me de um excerto de Irène Némirovsky, que no romance Dois escreveu: Todos cantaram, dançando: / - 1920 está morto! Viva 1921! Viva o novo ano! O problema não seria tanto o plágio, mas a falta de força do escrito, do deste narrador. Uma coisa é comemorar a passagem de ano, outra bem diferente é a de assinalar a transição de um mês para o outro. Do ponto de vista físico, a realidade é exactamente a mesma, mas na perspectiva da psicologia colectiva são coisas absolutamente diferentes. Uma convenção, dir-se-á. Sim, uma convenção, mas nós seres humanos somos o que somos também porque existem convenções. Quando se é adolescente ou pós-adolescente é-se anticonvencional, mas esse sarampelho passa com idade. Se, para infelicidade da pessoa, se torna crónico, então é melhor consultar um médico da especialidade. Isto significa que este narrador é profundamente convencional e não se espere dele nada mais do que convenções e trivialidades. Se alguém estiver interessado em vanguardas, então está no pior sítio para as encontrar. Aqui não se marcha para a frente, mas também não se recua. Aqui é o lugar da pura imobilidade. Mais quieto só o motor imóvel, o qual, apesar da imobilidade, faz mover o mundo.
quarta-feira, 31 de maio de 2023
terça-feira, 30 de maio de 2023
Palavras
Um dilema. Deixemos de lado os calendários digitais e concentremo-nos nos de papel. Que tipo será preferível? Aquele em que as folhas dos meses estão presas num sistema de argolas e que, acabado o mês, se faz girar a folha para trás ou os que exigem que a folha seja arrancada e deitada fora? São duas concepções de tempo diferentes. Na última, o tempo é visto como linear, esgotando-se para toda a eternidade. Na primeira, porém, subiste um sintoma do tempo cíclico. Ao fazer rodar a folha para trás, fica-se com a impressão de que ela acabará por voltar, numa cadeia interminável. É uma ilusão como todos sabemos, pois, acabado o ano, o calendário não volta ao Janeiro que passou, mas é deitado fora e substituído por outro, com um Janeiro novinho em folha. No entanto, uma ilusão pode ser bem mais do que um erro cognitivo. Pode ser um sinal de que a sensação de um tempo linear que se devora a si mesmo está incrustada no eterno retorno do mesmo. Nos dias que correm, as pessoas estão muito preocupadas com a vexata quaestio da verdade. Uns porque não suportam a sua luz e querem apagá-la, outros porque desejam que ela brilhe mais intensamente. O núcleo do drama reside nas palavras. Com elas podemos fazer quase tudo, inventar ou apagar problemas, estabelecer as mais inusitadas relações, produzir as meditações mais levianas, como a das folhas do calendário ou outras que se propagam nestes textos, cujo núcleo central é o disparate em forma de pensamento. Nos anos setenta, havia uma canção interpretada por Alain Delon e Dalida. A certa altura, ela dizia: paroles et paroles et paroles. Ora, se me falta uma filosofia para tratar do assunto, há sempre uma cançoneta, daquelas que passavam na rádio, perdida no fundo negro da minha memória que explica aquilo que há a explicar. Palavras, leva-as o vento.
segunda-feira, 29 de maio de 2023
Questões climáticas
Isto anda mal. Por isto refiro-me à imaginação. Parece estar pouco disponível para encontrar tema para esta narrativa. Resta-me falar do clima. Por aqui chove e chove desde a manhã. Aliás, já chovia quando ainda não tinha despontado a aurora de róseos dedos, pois acordei às tantas da noite e ouvi aquilo que me pareceu ser chuva. Até o assunto do clima se esgota rapidamente. Talvez seja essa a medida de todas as coisas humanas, esgotarem-se demasiado depressa. Sim, eu sei, há coisas que parecem nunca ter fim. Isso, porém, não passa de uma aparência e nem tudo o que parece é, como sublinha a sabedoria popular. Por desfastio, estou a ouvir uns quintetos com piano, de João Domingos Bomtempo. Ora, a questão climática persegue-me mesmo na música. Logo o homem haveria de se chamar Bomtempo. Por aqui, há uma família conhecida como os Má Tempo, assim mesmo. Não consta que tragam mais tempestades e ciclones do que qualquer outra família. Estes nomes são um mistério. Aliás, tudo é um mistério e o que não nos parece ser misterioso deve-se apenas à habituação do olhar. De tanto vermos uma coisa, pensamos que a conhecemos. Isso, porém, é uma armadilha que as coisas lançam e nós caímos nela. Elas querem repousar descansadas, temerosas das nossas indagações, então deixam que criemos ilusões sobre o nosso conhecimento. Quando estamos distraídos riem-se de nós. Se ficamos atentos, fingem-se de mortas, o que é sempre uma boa solução.
domingo, 28 de maio de 2023
Da estupidez
O último ensaio do livro Ensaios, de Robert Musil, não é bem um ensaio, mas o texto de uma conferência proferida em Viena, no dia 11 de Março de 1937, com o título Über die Dummheit, Da estupidez, na tradução portuguesa. Eis um tema sobre o qual sou versado e sou-o de uma forma decisiva, isto é, de uma forma prática. Não se pense, porém, que me reconheço como estúpido. Impossível. A prática vem de pensar muito no assunto, como se verá na sequência. Todos nós, seres humanos, estamos convencidos de que estamos rodeados pela estupidez, mas pela estupidez dos outros. Se se fizer um inquérito, por maior que seja a amostra, não se encontrará um caso que seja de alguém que se reconheça como estúpido. Isto conduz-nos a uma primeira conclusão, a estupidez é sempre um problema dos outros. Nenhum eu tomará a palavra e dirá: eu sou estúpido. Se o bom senso, no dizer de Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que tem, a estupidez, pelo contrário, é a coisa que mais está em falta nesse mesmo mundo, pois não há ninguém que não reconheça estar desapossado dela, de ser um miserável no que toca à estupidez. Portanto, a estupidez é um problema dos outros pronomes pessoais. É um problema do tu, do ele e do ela, do vós e do eles e do elas. Só as primeiras pessoas, do singular ou do plural, não são estúpidas. Se o fossem como poderiam ser primeiras pessoas? É sabido que aquilo que faz com que uma primeira pessoa seja primeira, mesmo na região etérea da gramática, é a ausência de estupidez. Alguém poderia objectar que não é certo que um nós não contenha um conjunto de estúpidos. Um nós resulta da junção de vários eus. Ora, se não há nenhum eu que seja estúpido, aonde é que um conjunto de eus iria buscar a estupidez? A nenhures. Um problema prático. Muitas almas cheias de boa-vontade costumam perguntar sobre como erradicar do mundo a estupidez, coisa de estão desprovidas, mas que sabem existir ao seu redor. Eu tenho uma solução, embora desconfie que quem me poderia auxiliar nessa gesta gloriosa não esteja disposto a fazê-lo. Bastaria reduzir os pronomes pessoais às primeiras pessoas do singular e do plural. Não havendo nem tu, nem ele, nem ela, nem vós, nem eles, nem elas, também não haveria estupidez. Haverá, porém, algum gramático com alma de redentor do mundo disposto a abolir esses malfadados pronomes pessoais? Desconfio que não, ou não fora ele um estúpido ele.
sábado, 27 de maio de 2023
Mar da vulgaridade
A manhã passada em trivialidades, daquelas que compõem a vida e que sem elas, esta não seria possível. Imagino que o programa existencial produzido para gerir a vida humana ache relevante que a maior parte da curta existência que cabe a cada um seja gasta em banalidades. Talvez não suportássemos ter sido feitos de outra forma. Não conseguiríamos viver, ou mesmo sobreviver, num mundo onde a vida fosse composta por singularidades, extravagâncias e originalidades. Cairíamos por terra logo ao segundo assalto. Vistas assim as coisas, faz sentido que mergulhemos no mar da vulgaridade e orientemos o frívolo barco da nossa existência por essas ninharias que compõem o quotidiano. Comprar pão, beber café, mandar lavar o carro, comprar peúgas ou uma caixa de cerejas, com a qual se foi trivialmente enganado. Caixas de diversos preços e calibres. Compra-se uma de maior calibre, paga-se mais. A realidade, todavia, é que estamos em Portugal, e o calibre que justificava o preço só tinha tocado as cerejas de cima. As de baixo eram miseravelmente pequenas e, para azedar o ânimo, sensaboronas, ao contrário das outras. Julgo que isto fará também parte da trivial arte de ser português. A música corre por aqui, vai variando, de Satie a Messiaen, embora o que me vai na alma seja o desejo de dormir uma sesta, como se fosse espanhol, o que, manifestamente, não sou, nem tenho nostalgia de uma unidade ibérica. Tenho muitas coisas para fazer, mas o melhor é ir dormir.
sexta-feira, 26 de maio de 2023
Do sólido ao gasoso
Uma visita ao registo civil. Eis um belo título para uma novela de suspense. Por aqui, o registo civil mudou, há dias, das antigas instalações para umas modernas. Uma pessoa chega, um segurança levanta-se da secretária e, depois de questionar a finalidade da visita, dá instruções sobre o modus operandi. Retirada a senha de uma máquina que tem por função dar senhas a quem as pede, as pessoas sentam-se e aguardam que num monitor surja o número da sua e a indicação do balcão a que deve dirigir-se. Sentei-me e aguardei, isto é, fui aguardando, pois estamos num território onde o tempo é vagaroso. Quando estava a chegar a vez da minha senha, a senhora evaporou-se do balcão. Passado um espaço de tempo apreciável, vejo-a aproximar-se do lugar, senti que tinha chegado a minha hora, mas sem que eu desse por isso tornou a evaporar-se. Estou num mundo onde as coordenadas físicas são diferentes das habituais, pensei. Passado mais um intervalo generoso, a senhora que tem um talento especial para viajar entre os estados sólido e o gasoso, lá se solidificou na cadeira e, como na lotaria, saiu o número da minha cautela. A senhora foi amável, talvez não muito segura, mas enfim. A certa altura confessou sabe, este processo é um pouco moroso e nós somos apenas três e uma das minhas colegas, por problemas pessoais, teve de faltar, são coisas que acontecem. Pois são, anuí. E continuou a confissão o melhor é mesmo fazer uma marcação para outro dia, onde estejamos todas e assim haverá mais tempo, a senhora conservadora pode dar uma ajuda. Fazemos assim, fica aqui marcado na agenda (uma agenda em papel), o senhor tira a senha na mesma, mas dirige-se logo ao balcão, diz que tem uma marcação. Encolhi os ombros e disse que sim, que faria isso. Tenho esperança de que a colega resolva os problemas e volte ao serviço, não vá ser precisa outra marcação. A burocracia nacional é uma instituição. Em tempos havia uma coisa extraordinária, que, entretanto, caiu em desuso, julgo. Era a certidão de nascimento. Para as coisas mais estapafúrdias não bastava a presença da pessoa e o bilhete de identidade. Sem a certidão de nascimento, a burocracia nacional não tinha a certeza de que aquela pessoa que estava ali tinha de facto nascido. Imagine-se que um não nascido chegava e queria tratar do casamento ou do divórcio, ou sabe-se lá o quê, o que um não nascido pode querer fazer neste mundo, neste universo onde há pessoas que passam, com facilidade desusada, do estado sólido ao gasoso, embora tenham mais dificuldade em voltar a solidificar-se.
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Magnanimidades
Maio escoa-se. Da rua vêm barulhos que me incomodam. Talvez ande a dormir pouco e de dia não tenha paciência para o que perturba uma atmosfera pacífica e silenciosa. Acabei de ler o romance Devorar o Céu, de Paolo Giordano, autor de A Solidão dos Números Primos, que nunca li. Na contracapa de Devorar o Céu estão impressas várias opiniões sobre a obra. Um romance magnânimo, segundo o The New York Times Book Review. Fico perplexo. Será a magnanimidade uma categoria literária ou de crítica literária? Não consegui encontrar o texto onde a obra terá sido assim sentenciada. Faz-me lembrar um dito de Roland Barthes sobre o adjectivo agradável, um dito que talvez seja apócrifo. Diz-se que uma coisa é agradável quando nada se tem a dizer sobre ela. Depois de um convite, profere-se, como agradecimento, foi uma noite agradável, muito agradável. É possível que Barthes nunca tenha dito ou escrito nada de parecido, mas seja ou não ele o autor, o dito capta a coisa. Ora, um romance magnânimo pode estar longe de ser um romance magnífico. É verdade que existe alguma magnanimidade, talvez excessiva, para coisas que o romance manifesta, mas o adjectivo magnânimo soou-me a agradável. Contudo, o romance não é agradável, no sentido do dito de Barthes, mas um romance que merece ser lido e que capta o ethos de uma geração que me é estranha. Quando se fala no ethos de uma geração, faz-se uma generalização imprópria. As gerações têm múltiplos ethos. Uns diferentes, outros antagónicos. O do romance é o dos activistas climáticos radicais e do niilismo que se esconde em todo o agir que, ultrapassando a justa medida, se torna hiperbólico. Acabado o romance, tenho um problema para resolver. Qual será o próximo? Depois penso numa coisa que terei lido já não sei bem onde. Na hora da morte, ou depois dela, o Supremo Juiz perguntar-te-á o que fizeste e não o que leste. Essa frase perturbou-me em tempos. Havia nela uma estranha semelhança com a 11ª tese de Marx ad Feuerbach: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. Ora, sempre preferi a interpretação à transformação, sempre dei mais importância ao ler do que ao fazer. Quanto mais se faz, pior se torna a realidade. Exagero, mas talvez esteja hoje dedicado à hipérbole. Maio aproxima-se do fim, mas isso não é um alívio.
quarta-feira, 24 de maio de 2023
Défice hermenêutico
Chove e troveja, o sopro do vento empurra a ramagem das árvores, não avisto ninguém na rua, mas um gato esconde-se debaixo de um carro, espreguiça-se, bem o vejo, mas logo se senta como só os gatos se sabem sentar. Olho os céus à procura de sinais, mas não existem, ou se existem não consigo descortiná-los. Talvez seja melhor assim, pois se os visse não haveria de saber interpretá-los. Apesar da pequena intempérie, os pássaros meus vizinhos continuam a entregar-se a estranhas conversas. Presumo que sejam estranhas, pois também não consigo decifrá-las. Os meus poderes hermenêuticos andam por baixo. Hoje, ao passar pela avenida marginal duas coisas chamaram-me a atenção. A primeira foi os castanheiros. Todos os anos, a época em que florescem é para mim um grande prazer. Este ano, contudo, a floração foi miserável, senão pindérica. Eis outro sinal que não consigo interpretar. A segunda coisa que me chamou a atenção foi o anúncio das festas da aldeia – sim, eu sou um aldeão – onde aterrei neste planeta. Não tenho grande experiência dessas efemérides, mas continuam a ser para mim um mistério. Via as pessoas muito envolvidas, exuberantes, orgulhosas, um entusiasmo transbordante, para não falar em rivalidades, mas nunca consegui encontrar o que motivava tais estados de alma. Aquilo não era mais decepcionante do que a generalidade das coisas humanas, mas não deixava de o ser. Talvez a grandeza da festividade resida na sua pequenez, mas hoje não é o melhor dia para fazer interpretações. As minhas relações com Hermes estão tensas. Numa plataforma que agrega notícias e pseudonotícias vejo anunciar um artigo em que me revelará quais são os três signos mais poderosos do zodíaco. Decido ver. O meu não está lá. Bem me parecia que era um falhado. Contudo, segundo me disseram em tempos tenho o ascendente e a Lua num daqueles que se encontra no top três dos mais fortes. Em resumo, não me saiu a sorte grande, mas tenho a terminação. Há muito que não ouvia esta expressão. Seja como for, não sei como empregar a força que impregna o meu ascendente e a minha lua, se é que possuo um ascendente (sobre quem?) e uma lua. Talvez por isso não passe de um miserável narrador. Parou de chover.
terça-feira, 23 de maio de 2023
Uma teoria da loucura
Um alarme, presumo que de um carro, esteve mais de um quarto de hora a tocar. Estava a começar a enlouquecer quando alguém o parou. Foi uma sensação de alívio. Não nego a utilidade do dispositivo, mas tem efeitos colaterais desagradáveis, pois parecem ter sido concebidos para afastar ladrões e espalhar loucura no mundo. As pessoas começam a ouvir o ruído, nasce de imediato a esperança de que o proprietário acorrerá para calar a coisa. O proprietário, porém, não reconhece o som ou finge que não está a ouvir. A cabeça começa a ficar em água. Nesse ambiente húmido introduzem-se os primeiros germes da loucura. Quanto maior a humidade, mais depressa os germes se multiplicam. A norma, representada pela curva de Gauss, mostra que geralmente o som é desligado antes que os processos de enlouquecimento se tornem irreversíveis, mas, posso afirmá-lo, nem sempre isso acontece. Então, as pessoas entram no túnel na loucura, com os germes desta a turbilhonar por dentro do cérebro, de onde começa a sair uma água suja e malcheirosa. Nesse momento, incomodado com o aroma, alguém se apieda da vítima e chama uma ambulância. Chegada esta, saem dela polícias que tomam conta da ocorrência e transportam o novo louco para o lar dos loucos, onde a maior parte está ali devido a alarmes que não são desligados a tempo. Escapei por pouco.
segunda-feira, 22 de maio de 2023
Da menoridade
Hoje, as promessas foram cumpridas e choveu por aqui com alguma abundância. Isto salva a face da meteorologia como ciência profética. Por vezes, acertam nas previsões, coisa que mais raramente acontece na Economia. Mesmo depois de tudo consumado os augúrios sobre o crescimento do PIB mostram-se, muitas vezes, incapazes de oferecer um palpite que não seja depois corrigido. Quando era muito novo, ainda pensei em aderir à seita económica, mas o destino, na prudência que o caracteriza, resguardou-me de dar esse passo no mundo das trevas, que mais parece uma casa de apostas do que o lugar onde existe e se pratica uma ciência. Ontem, talvez por ser dia de descanso, vi alguns vídeos antigos com o antropólogo René Girard, que morreu em 2015. Não é desinteressante a tese sobre a origem da violência na sociedade. Trata-se de uma consequência da rivalidade mimética. Os seres humanos desejam aquilo que o outro deseja. Se A deseja x, então B também deseja x, não pelo valor deste, mas porque A o deseja. A imitação do desejo instaura a rivalidade e esta conduz à violência. Toda a sociedade se estrutura a partir deste modelo, seja a política, a economia, a universidade, o futebol. Aceitando a tese como boa, não podemos deixar de nos espantar de que a espécie humana nunca saia da sua menoridade, pois essa rivalidade é aquela que atira irmão contra irmão pela disputa da fatia de bolo. A causa da menoridade da espécie não seria então, como pensava Kant, a falta de coragem para usar o seu próprio entendimento, mas o fascínio pelo pedaço de bolo que o irmão irá comer. Não é um problema do uso da razão, mas da orientação do desejo. Deixar de desejar o desejo do outro e descobrir o objecto do seu próprio desejo, isso seria tornar-se adulto. Quando me sentei aqui, depois da azáfama do dia, para escrever, não imaginava que a conversa se desviasse para estes assuntos. É possível que me faltassem outros mais sérios, agora que a chuva parou.
domingo, 21 de maio de 2023
Uma sugestão
Parece que tudo se conjuga. A terra está a pedir chuva, os sites meteorológicos prometem-na com grau elevado de probabilidade. Esta conjugação deveria permitir-me, quando olhasse através dos vidros da janela, ver a água cair dos céus. Ora, o que se prova é que mesmo quando tudo se conjuga para que algo aconteça isso não significa que aconteça. Não chove, está um céu esbranquiçado, uma luz anémica. S. Pedro, o grande regulador dos estados anímicos do clima, não está pelos ajustes e diverte-se com as expectativas frustradas. Está na altura, parece-me, de ele ceder a função a um outro santo mais jovem, com menos problemas auditivos e com a visão mais acurada. Poder-se-ia dar o título de meteorologista emérito a S. Pedro, enviá-lo de férias, enquanto o novo titular punha ordem na casa, isto é, no clima da Terra. Caso escolhido com critério, o novo detentor do posto poderia ser capaz de resolver o problema das alterações climáticas, coisa que o actual incumbente parece não ter a força suficiente ou a paciência para fazer. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, este narrador é um poço sem fundo de óptimas sugestões para a resolução dos problemas do mundo, mas a que ninguém dá ouvidos. É uma pena, pois se os seus sábios conselhos fossem seguidos, tudo andaria pelo melhor. Sendo assim, quando é preciso chuva, não chove. Quando ela não é necessária, há-de cair a cântaros, com inundações a lembrar o dilúvio, e nós sem um Noé que construa uma arca. As acácias da praceta estão a cobrir-se de folhas, mas ainda se vêem os ramos, como se fossem braços esguios dirigidos ao céu em oração peticionária, mas o Santo, quase cego e quase surdo, não dá por nada, entretido a cismar, a falar com os seus botões, cansado da função. Como eu o compreendo.
sábado, 20 de maio de 2023
Teoria da conspiração
O dia declina lentamente, enquanto o telemóvel não pára de me enviar sinais. Vivemos mergulhados num mundo de mensagens. Com o passar do tempo, começamos a desconfiar que o excesso de mensagens é uma espécie de conspiração. Não que eu acredite que por detrás do que se passa no mundo existem sociedades secretas que fazem acontecer aquilo que acontece. As conspirações em que acredito são muito mais radicais, pois são conspirações sem conspiradores. O efeito combinado de múltiplas decisões e acções não conspirativas – decisões e acções que, na sua singularidade, são razoáveis e senão transparentes, pelo menos, translúcidas – torna-se completamente obscuro e decididamente conspirativo. Conspira para trazer o que virá, embora não haja qualquer conspirador que produza a conspiração. Numa linguagem um pouco esotérica, poder-se-ia dizer que é uma acção sem agente. Durante muito tempo, e mesmo agora, a ausência de agente era preenchida segundo um modelo teológico. Se a conspiração trazia efeitos maléficos para os homens, o agente era o demónio. Caso contrário, era Deus. Talvez precisemos sempre de um conspirador para explicar aquilo que acontece, pois o que acontece não deixa de nos maravilhar ou de aterrorizar, e se os acontecimentos têm esse poder, então o coração humano exige um sobrepoder oculto que os faça acontecer. E essa exigência não á apenas psicológica, também é estética. Quem quer saber de narrativas que contam histórias onde não existem protagonistas?
sexta-feira, 19 de maio de 2023
Imagens, palavras e dores de garganta
Uma dor forte na garganta e um estado de ânimo prostrado foi condição suficiente para que não fizesse a caminhada matinal que a sexta-feira me permite. Não evitou, porém, que participasse numa reunião, pois o admirável mundo novo trazido pelas videochamadas impede que eventuais vírus se transmitam pelas ondas do éter. Lá chegaremos, mas a tecnologia disponível ainda não foi tão longe que permita o teletransporte de seres minúsculos como o são os vírus. Se um vírus me atacou, caso ainda por provar, os outros participantes não me poderão acusar de ser um contaminador implacável. Por outro lado, pelo mesmo motivo, já faltei a um compromisso presencial e irei faltar a outro mais logo. Tendo jurado não sair de casa, entre tarefas resolúveis no lar, tenho dedicado algum tempo a uma revista de que já falei por aqui. A do número de Verão, de 2023, da Electra. A reprodução de pinturas de Albert Oehlen é um momento alto deste número. Talvez esteja com pouca disposição para mergulhar nos artigos que ainda não li e fico a contemplar as imagens. E isto fez-me lembrar uma expressão que abomino, uma imagem vale mil palavras. A abominação vem de isso ser um lugar-comum assente no desconhecimento do que é uma palavra. Já se imaginou quantos milhões, milhares de milhões de imagens se escondem por dentro de uma palavra tão trivial como cadeira. As palavras vivem ajoujadas com o peso das imagens que têm dentro delas. Nenhuma imagem vale uma palavra. Cada imagem vale por si mesma e quando começa a valer por outra coisa, então deixa de ser imagem. Uma imagem não é uma nota de banco. Nada disto obsta a que a garganta não tenha sinais de infecção, mas ajuda a conviver com eles.
quinta-feira, 18 de maio de 2023
A espiga
Poderia começar citando Camões e confirmar que Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e por aí fora. Ora, o que mudou mesmo foi a idade. Estou a falar por enigmas e isto não é bom para a comunicação. A coisa não tem segredo. Por aqui, é feriado municipal. Este é um dos muitos concelhos que escolheu a Quinta-Feira de Ascensão para dia de guarda concelhio. Várias vezes, aproveitando aquela ideia de fazer uma ponte e mergulhar numas miniférias, saía de casa na quarta-feira, pela hora do lanche, e só parava em Sevilha, para deambular por aquele ambiente que parece vindo de uma outra galáxia. Agora, qual Sevilha. Uma viagem até junto do mar, para ir almoçar a S. Pedro de Moel, apreciar as águas escuras, a brisa marítima, os céus nublados, pensar nas praias da Normandia, e voltar para casa, antes que se faça tarde. Não foi o tempo, nem a vontade que mudaram, nem tão pouco o ser. O que mudou foi a confiança, as centenas de quilómetros foram trocadas por algumas, poucas, dezenas. Houve uma coisa, porém, que me espantou neste dia e não foi um ramalhete rubro de papoulas. Quando se sai de S. Pedro em direcção a Vieira de Leiria, numa curva apertada, há uma entrada para o Pinhal de Leiria. Como de outras vezes não hesitei em entrar por ali. Deparei-me, porém, com um espectáculo que não imaginara. Por todo lado havia aglomerações de pessoas e carros, gente que, em grupo, se entregava a enormes, pelo menos no número de comensais, banquetes. Descobri que também na Marinha Grande é feriado e, por abdução, inferi que aquela seria a forma de irem apanhar a espiga num sítio onde não as há. Eu nunca fui apanhar a espiga, coisa que por aqui se fazia, mas posso estar esquecido. Talvez tenha ido uma vez. Imagino que na altura achasse que era uma espiga ir apanhar a espiga. Devia ter ido para Sevilha.
quarta-feira, 17 de maio de 2023
Um livrinho sossegadinho
Ocorreu-me, passe a presunção, que estes textos poderiam constituir o meu Livro do Desassossego. Não que entre este narrador e aquele que fala no livro original exista comensurabilidade de génio e experiência literária. Não seria bem um Livro do Desassossego, mas um Livrinho do Desassossego. A cada um o que lhe é devido. Enquanto o de Fernando Pessoa vive num limbo de propriedade – será que o autor é o Bernardo Soares ou o Vicente Guedes, ou mesmo os dois? – este não teria nome de autor e, por isso, não constituiria propriedade de ninguém. A única objecção plausível que encontro para essa hipótese é que o livro que destes bilhetes postais se viesse a produzir nunca poderia ser um livro do desassossego, mas um livrinho do sossego, como quem diz um livrinho sossegadinho. Este narrador não é habitado por inquietações metafísicas, nem por desassossegos em voga naqueles anos em que o Soares ou o Guedes laboraram. Não conviveu com a prosápia modernista e há muito que deixou de achar graça ao Manifesto Anti-Dantas. O que é que o Almada tem que ver com o facto de o Dantas fazer sonetos com ligas de duquesas? Cada um faz sonetos com o que pode, e se o Dantas podia fazê-los com ligas de duquesas, tanto melhor para ele, para as duquesas e para as ligas, que também são parte interessada. Aqui advoga-se o marasmo mais completo, sem a gritaria das odes modernistas a acompanhar o trabalho de amanuense. Aqui não há vivas nem morras, mas o deixar que o tempo passe, esperando que não faça muito calor, e se fizer que seja propício a uma boa sesta, ou então a uns sonetos, mas não sobre ligas de duquesas, pois este narrador não conhece duquesas e, por isso, não pode escrever sobre as ligas que elas, talvez por serem duquesas, ainda continuam a usar, à espera de um Dantas que delas faça um soneto, um recatado soneto.
terça-feira, 16 de maio de 2023
A ética do narrador
Na postagem de ontem, descobri há pouco, que tinha um á no lugar de um à. Ora, a orientação do acento não é coisa de pouca importância, ainda por cima numa época em que se cultiva tudo o que é orientação, mesmo aquilo que resulta da desorientação, pois esta ainda é uma orientação, embora falhada. Não fora eu um narrador apolítico e esta conversa teria o aroma sulfuroso da política, isto é, das políticas de orientação. Embora não me seja permitido, e ainda bem, falar de política por aqui, possa recordar que ela, a política, é um caminho curto para o inferno. Isto no dizer de Maquiavel. Quem não quer condenar-se à perdição eterna o melhor é não se meter nesses caminhos e quem aspirar à glória dos altares deve abster-se de possuir qualquer opinião sobre o assunto. Aqui pode surgir um estranho equívoco. Será que este narrador aspirar à santidade, a ser venerado por fiéis com velas de cera e orações? Não. A razão é muito simples. Um narrador pertence a uma classe de seres para a qual não estão disponíveis as possibilidades de perdição ou de salvação. Tal como as pedras, os vírus e as poeiras cósmicas, também os narradores estão condenados ao desaparecimento sem castigo ou recompensa num além, ou mesmo num aquém. Isso não faz de nós, narradores, mesmo dos omniscientes, irresponsáveis. Pautamo-nos não pelo medo da perdição ou pelo desejo da salvação, mas por uma ética que nos ordena ao escrúpulo narrativo, o que não nos inibe de evitar a verdade e cultivar a mentira, que para nós tem o nome de ficção.
segunda-feira, 15 de maio de 2023
Duplicações
Uma manhã plena de afazeres, diligências, tarefas a cumprir. A tarde irá pelo mesmo caminho. Agora, porém, descanso. Suspendo a actividade e entrego-me à pura contemplação. É uma contemplação pura pois não tem objecto que a contamine. Exerce-se sobre si mesma, é a contemplação da contemplação. Houve uma época em que estas duplicações estavam na moda, mas, como tudo o que está na moda, chegou o momento em que se tornou fora de moda. Não seria destituído de interesse falar da descrição da descrição ou da narração da narração. Podemos imaginar a Odisseia, de Homero, e a partir dela esperar uma Odisseia da Odisseia. O problema é que a estratégia tem limites. Por exemplo, diante de mim tenho o romance de Paolo Giordano, Devorar o Céu. Ora, não faz sentido falar em Devorar o Céu do Devorar o Céu. Nesta hora de contemplação poderia dedicar-me à catalogação das narrativas cujos títulos podem ser reduplicados. Seria uma tarefa ociosa, mas haverá alguma tarefa neste mundo que não seja ociosa? Também podemos pensar no ócio do ócio, mas é possível que alguém pense que quem escreve estes bilhetes postais precisa de acompanhamento psiquiátrico. Uma provocação. A realidade é que não me apetece fazer nada, nem mesmo dedicar-me ao ócio. Talvez uma sesta. Talvez, se fosse espanhol, o que não é o caso.
domingo, 14 de maio de 2023
Sonolências
Um domingo sonolento, como o são os domingos de província. Deslocam-se pesados e lânguidos pelas ruas, suspiram, sentam-se num banco de jardim, se está sol, respiram fundo e adormecem, até que um golpe de vento ou o latido de um cão os acorda, e voltam a ser domingos, com os seus fatos provincianos, as pernas bambas e um cérebro infestado de vermes, micróbios, fungos, salmonelas, vírus de vária origem. Penso em tudo isto para não pensar noutra coisa, pois existem imensas coisas para pensar, mas não me apetece, o almoço talvez se tenha tornado pesado, talvez tenha bebido um pouco, o que me dá sono, talvez nem tenha ocorrido uma e outra coisa, e eu não tenha almoçado, e sofra de fraqueza. Uma das minhas netas entrou no escritório e perguntou-me se lhe dava duas folhas brancas. Perguntei-lhe: duas folhas brancas de que cor? Olhou-me perplexa e quando ela ia pensar se o avô estaria bem, sorri-lhe e ela sorriu-me descansada. Afinal, estava a brincar comigo, terá pensado, pegou em duas folhas brancas, agradeceu e saiu. A outra, pobre dela, continua a ser submetida a exercícios de Matemática. Há pouco houve um drama qualquer acerca de coordenadas e abscissas, o eixo do xis e o eixo do ípsilon, e outras aleivosias do género. Os dias, por aqui, continuam ventosos, muito pólen pelos ares, poeiras, sabe-se lá mais o quê. Não tarda, e elas vão-se embora, para que fique um vazio pela casa, desapareçam os risos que só as raparigas conhecem o significado, e o domingo ainda se torne mais domingo e mais provinciano.
sábado, 13 de maio de 2023
Superposição de estados
Hoje de manhã, ao parar o carro para ir à padaria, deparei-me com um gato em cima de um muro. Ao vê-lo naquele estado em que, havendo sol, os gatos parecem suspender a existência, pensei: é o gato de Schrödinger. Está vivo e está morto, ao mesmo tempo. Depois, retrocedi no pensamento. Não pode ser o gato de Schrödinger, estando eu a observá-lo, necessariamente que o seu estado estará definido. Ou está vivo ou está morto. Não há lugar para uma superposição de estados. Isso perturbou-me no caminho até ao sítio onde, para além do pão, se vendem uns bolos que, decididamente, não são maus e bons ao mesmo tempo, mas apenas muito bons. Excelentes. A causa da perturbação reside em que se tudo o que há estivesse num estado de superposição, mesmo quando observado, a realidade seria mais rica, pois estava sempre num estado potencial. Abríamos a caixa e o gato continuava morto e vivo, pois tinha e não tinha sido envenenado, coisa que causaria repulsa à nossa razão, a qual, como se sabe, abespinha-se facilmente e mal pressente o aroma da contradição – por exemplo, num mero oximoro – começa a sentir-se mal, a pedir que lhe tragam os sais, senão desmaia, e não há espectáculo mais triste do que ver uma razão que perdeu os sentidos, espalhada pelo chão. A conclusão de toda esta aventura é a seguinte: não se deve ir à padaria, mas se se for, convém não encontrar um gato em cima do muro. Caso isso tenha de acontecer, não olhar para ele, se não se conseguir evitar o relancear dos olhos pelo bichano, não fazer associações idiotas. Se mesmo isso, porém, não for possível, o mais indicado é comer um bolo que a padeira, uma rapariga nova e engraçada e que, presumo, não seja de Aljubarrota, venderá de bom grado. As minhas pobres netas não estão preocupadas com o gato do senhor Erwin, mas com umas fórmulas de matemática, cada uma com as suas. Vou levar-lhes um bolo que não esteja num estado de superposição quântica, ou seja lá o que isso é.
sexta-feira, 12 de maio de 2023
Redundância
Também as aves se entregarão à redundância? Um dos pássaros meus vizinhos – presumo que seja um – está há largos minutos a repetir o mesmo som. Terá medo que a mensagem não seja compreendida, que o destinatário sofra de problemas de audição ou tenha uma inteligência lenta, demasiado lenta, para decifrar de imediato o que ele quer comunicar? Podia irritar-me com esta vizinhança dada à iteração, mas não tenho o direito de o fazer, pois também sou vocacionado para a redundância. Repetir-me está a tornar-se um modo de ser. Dou comigo a contar a mesma história pela enésima vez. Isto não é completamente verdade. Estou em registo hiperbólico. A maior parte das vezes dou por aquilo que tenta a minha mente e consigo conter-me antes que a redundância se torne pública. Sei, porém, que chegará o dia em que a censura não funcionará. Nessa hora, o eu redundante que sou manifestar-se-á na sua plenitude. Julgo que o destinatário da mensagem do meu plúmeo vizinho a terá compreendido, pois este calou-se. Talvez tenha desistido de se fazer compreender, sopra alguém dentro da minha mente. Eu sorrio e digo alto, embora ninguém esteja por perto, que a minha mente é muito mal frequentada. Gente dada ao sarcasmo, por exemplo. Devia lavá-la, mas ainda não encontrei um produto que sirva para branquear as mentes. Mais logo, chegam as minhas netas. Oiço uma gargalhada, e uma voz troveja: as netas não são tuas, idiota. Não passas de um narrador. São minhas, eu é que sou o autor e tenho netos. Vou jantar fora com elas, enquanto tu ficas no limbo daquilo que existe apenas na consciência, mas não na realidade. Amanhã, continuou, talvez te tire por uns minutos do pardieiro onde vives. Ou será de uma enxovia? Calou-se e foi-se embora.