terça-feira, 12 de novembro de 2024

Verdade e autoridade

No evangelho de Nicodemos, um dos evangelhos apócrifos, Jesus, em resposta à pergunta de Pilatos – Na terra, verdade não há? – diz: Vês como os que dizem a verdade são julgados por aqueles que têm autoridade na terra. Não seria diferente a resposta dada por Sócrates à mesma pergunta. Jesus não nega a existência da verdade neste mundo. Torna manifesto um conflito insanável entre a verdade e a autoridade. Ter autoridade na terra significa poder prescindir da verdade. O poder não é apenas algo que se exerce sobre os que o não têm, mas um modo de conformação ontológica. Torna realidade aquilo que é desprovido dela. Nem Jesus nem Sócrates cometeram algum crime, mas o poder – a autoridade – transformou inocentes em criminosos e agiu em conformidade. Quando as pessoas se espantam que gente com grandes problemas com a verdade seja adulada pela multidão e levada ao poder, esquece estes episódios que são marcantes na história da humanidade ocidental. O conflito com a verdade é uma virtude para aquele que aspira a ter autoridade sobre os outros, que aspira a poder moldar a sua natureza, tornando-os inocentes ou criminosos em conformidade com o seu desejo. Apesar de Jesus ter sido executado há mais de dois mil anos e Sócrates há mais de dois mil e quatrocentos, apesar de serem figuras centrais na cultura ocidental, continuamos iguais aos gregos que votaram a condenação de Sócrates e à turba que pediu a morte de Jesus. A verdade não interessa à autoridade porque não interessa aos que a ela se submetem.

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