sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Devorações

A primeira metade de Novembro está cumprida. Também o conjunto musical da escola aqui ao lado realizou o seu ensaio. São músicas arcaicas. Imagino que o grupo seja composto por professores reformados, mas é apenas uma suposição. Ou será uma banda animada por um professor de História que esteja a pesquisar a música dos anos sessenta e setenta do século passado? É possível. Também nestes ensaios há um antes e um depois da pandemia. Até à emergência da COVID-19, os ensaios eram às quartas-feiras. Agora, são às sextas. Talvez tenha sido por eles ensaiarem às quartas que se desencadeou aquela doença tenebrosa que caiu sobre o mundo. Estas coisas nunca se sabem, e a generalidade do que acontece tem causas insuspeitas. Se tiver sido esse o caso, ou mesmo que não tenha sido, foi sensata a mudança do dia de ensaio. Não vá o diabo tecê-las e mande nova pandemia. Isso mostra que o grupo musical tem capacidade de ler os sinais e aprender com o que acontece, mesmo se os progressos musicais não sejam, ao longo dos anos, coisa de assinalar. Isto é outra suposição, pois não sou crítico musical. Quando comecei a escrever este texto, a noite estava perfilada, ao longe: hirta, pronta para marchar. Agora, já oiço as suas botas cardadas. Ela aproxima-se com um passo cadenciado e firme. Não tarda e devorará o crepúsculo, que é coisa que as noites gostam muito de fazer pela tardinha. Para se vingar, o crepúsculo devorá-la-á, para que chegue a aurora. É triste, mas a vida não passa de uma cadeia de devorações, como se sofresse de um transtorno crónico de compulsão alimentar. Na avenida, os carros seguem a luz dos seus faróis, e as pessoas passam rápidas para desaparecer do meu horizonte — um horizonte limitado.

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