domingo, 17 de março de 2024

Fases da vida

Hoje está calor. Saí há pouco e fiz uma pequena caminhada. O sol já incomodava e a temperatura não era apenas amena, estava para lá dessa doce amenidade que se imagina existir nas paisagens bucólicas e pastoris designadas por locus amoenus. Enquanto caminhava e sentia os raios solares cravarem-se no corpo, meditava que não faltará muito para que esta terra, onde levo a minha pacata existência de homem privado, se torne um locus horrendus, uma terra devastada não por um Inverno hostil, mas por um Verão que se torna presente bem antes de ter chegado a hora de se apresentar ao serviço. Tudo isto, porém, já foi escrito por aqui, múltiplas vezes prova de que cheguei à idade das repetições. Imagino que a vida humana se move entre a idade dos porquês e a idade das repetições. Antes e depois disso a vida, apesar de humana, será um balbuciar, primeiro, ascendente; depois, descendente. Entre a interrogação dada pela perplexidade e a iteração induzida pelo medo de perder as certezas, a vida decorre num processo em que a perplexidade se vai transformando, pouco a pouco, até chegar à estabilidade de se estar certo, embora se possa estar completamente errado. Assim, passamos da perplexidade e da incerteza para a segurança, depois para a evidência, a seguir para a firmeza, a velha firmeza de carácter, o passo seguinte é a certeza, que será marcada pela infalibilidade. Quando se chega à iteração é porque a infalibilidade se mostrou, secretamente, falível e começamos a repetirmo-nos. Em resumo, já não estou num locus amoenus, mas ainda não cheguei a um locus horrendus. Tudo tem o seu tempo. Não há nada melhor para acabar um texto do que um lugar-comum.

sábado, 16 de março de 2024

Novidades

Um dos Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke, começa com uma referência ao novo, à novidade: Ouves o novo, Senhor / rugir e tremer? / Vêm os arautos / para o elevar. Houve um momento em que a Europa se rendeu ao novo, trocou por ele a experiência sólida do passado e lançou as comunidades numa experiência de inquietação, pois nunca sabemos lidar com o que aparece como sendo novo. Falta-nos o treino e o hábito enraizado. Se penso no assunto, o que por vezes acontece, pergunto-me se não haverá na nossa espécie um limite para a absorção de coisas novas. Rilke ouvia o novo rugir – ou ribombar, na tradução de João Barrento – e a tremer, imagino o barulho que o novo produzia, então, ao tremer. Hoje, o novo não ruge nem treme. Tornou-se um ruído de fundo, a música ambiente em que vivemos. É nesse ambiente que se pressente não apenas um desgosto, mas uma revolta contra o novo, como se a espécie, na sua declinação ocidental, tivesse chegado ao limite de novidades que consegue suportar. Os arautos do novo perdem audiência, enquanto outros arautos, proclamando o seu desdém pela novidade, são escutados, como se neles houvesse uma sabedoria. Não percebem que também são arautos e como tal portadores de novidades. Não se pode negar sabedoria à velha prática de um soberano mandar matar o mensageiro.

sexta-feira, 15 de março de 2024

A aposentação do deus

Ao meio-dia, a primeira metade de Março findou o seu serviço. Estamos já na curva descendente que levará o comboio deste mês sujeito ao deus da guerra para os braços de Abril, o mais cruel dos meses, aquele em que os lilases brotam da terra morta, o mês onde se mistura memória e desejo, tudo ideias roubadas a Eliot para me ajudar a compor a prosa. Ainda temos quase metade de Março para enfrentar e não sabemos – ou talvez saibamos bem demais – se o deus vai continuar enfurecido, arrastando a cólera sobre as terras da doce Europa, ou se decide ir de férias. O que desejaríamos, pois ainda temos uma réstia de memória, é que Marte pedisse a aposentação, deixando o lugar vago, mas sem candidatos ao seu preenchimento. Não há sinais de que ele se disponha a ir gozar um eterno, mas não merecido, descanso para uma ilha grega. Terá horror ao turismo e, mal por mal, prefere alimentar os campos onde os soldados se encontram para morrer uns ao pé dos outros, numa irmandade onde qualquer diferença se esbate. O dia esteve cinzento e chuvoso, mas agora o lençol de nuvens está esburacado, vendo-se, entre os buracos, um céu azul-claro, cheio de melancolia. Algumas nuvens reverberam tocadas pela luz, que se inclina para o mar e para a noite. Voltaram os pássaros meus vizinhos. Cantam como se estivessem na Primavera. Não estão. Nem eles, nem eu.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Novo email

Caro narrador,

Agradeço, nem imagina quanto, a sua resposta. Não precisa de se justificar, pois não tinha qualquer obrigação em responder-me de imediato. Nem sequer tinha de me responder, embora aprecie a reciprocidade. Terei sido educada nesse princípio. Sabe onde vivo, mas nunca nos cruzámos. Veio, como diz, várias vezes a minha casa, mas sempre em alturas que não estava cá. Desconhecia esse padrão de conduta de Eduína. Reservava para si uma esfera de amizades que não partilhava com a família. As pessoas da sua idade que por aqui passavam, quando estávamos em casa, eram nossas conhecidas, gente cujos pais e avós conhecíamos. Nunca tinha dado por isso. Imaginava que era o círculo de amizades de minha filha, mas começo a suspeitar que Eduína não tinha laços significativos com esses amigos. Quando ela saiu de Portugal, essas pessoas não deixaram de vir. Algumas, poucas, ainda me visitam, outras telefonam-me na altura dos anos ou das festas, a maioria desapareceu, sem que eu me tivesse apercebido. Sou uma velha e os anos que me separam dessa geração, apesar de não serem assim tantos, são o suficiente para que se esqueçam de mim e eu deles. Não sabe se me virá ver. Espero que tome, um dia destes a decisão de voltar aqui. Não encontrará Eduína, mas a sombra em que me tornei com o seu desaparecimento. Não lhe peço nada. Espero. É uma eternidade o pouco tempo que me resta.

Lívia


quarta-feira, 13 de março de 2024

Equilíbrio

Hoje, ao sair de casa, descobri que a Primavera está a chegar. Um calor agradável, uma boa disposição na face dos transeuntes, uma certa forma do corpo pisar a terra. Estes são os sinais. É possível que o Inverno ainda reivindique o que lhe pertence, mas a vitória da nova estação é inexorável. Ao chegar a casa fui ver as orquídeas. Ainda não há nenhuma florida, mas não lhes faltam botões. Este será um ano de esplendor, preguntei ao olhá-las. Elas permaneceram mudas. Não sei o que pensarão, o que vão decidir. Há anos de grande exuberância, outros em que uma qualquer indisposição as tolhe e ficam-se numa beleza pálida, como se fossem iluminadas por uma luz anémica. A consulta de hoje foi quase a horas, o que significa que não tenho motivos de irritação, a não ser o do preço da consulta que em seis meses aumentou quase vinte por cento, o que significa que o médico conseguiu bater a própria inflação. Imaginei que estava a pagar o privilégio de ser atendido quase a horas. Se fosse mesmo a horas, nem sei a quanto me ficaria a consulta. Conformei-me e pensei que não se pode ter tudo. Ou se tem consultas quase a horas ou se tem consultas a preços um pouco acima do razoável, que era o preço que pagava há seis meses. Saído da consulta de cardiologia, onde exibi umas análises gloriosas, decidi passar pela FNAC e comemorar com a compra de uns livros. Como estava sozinho, era hora de almoço, decidi continuar a comemoração na Portugália, pois aqui também há uma Portugália. Não que goste particularmente do que ali se come, mas com colesterol e triglicéridos tão saudáveis senti necessidade de alguma coisa que me equilibrasse, não vá ficar com saúde a mais. Como amanhã não vou fazer análise, não há problema, pensei.

terça-feira, 12 de março de 2024

Notas do dia

Ouve-se o ranger dos baloiços do parque infantil. É uma música de fundo irritante. Não bastava o que tenho entre mãos para desconsolo da alma, ainda tenho direito a um concerto para o qual não comprei bilhete nem quero assistir. Terei de pensar no isolamento das janelas. Parecia fiável, mas não resiste a este tipo de musicalidade. Hoje, o dia esteve quase primaveril, mas o entardecer está a inclinar-se para as sombras de Inverno. Recebi agora um telefonema da clínica que frequento para vigilância aos devaneios e delírios do coração. Parece que se tornou corrente os serviços assegurarem-se de que os pacientes – e, não poucas vezes, é necessária uma grande paciência – não sofrem de amnésia e não vão faltar à consulta. Talvez seja a isto que ficou reduzida nos dias de hoje a reminiscência platónica, embora uma consulta não seja propriamente um exercício de contemplação das formas perfeitas que habitam no mundo ideal. Nas consultas, o que está em causa é mesmo o mundo sensível, a fisicalidade dos órgãos, a vigilância da sua mecânica. Pura materialidade, portanto. O concerto de roldanas cessou. Ouve-se um grito. Na rua, passa um carro vagaroso e duas pessoas sem sombra atravessam a praceta. Ao longe, as paredes do hospital são um pasto de fungos. Tenho de voltar para a tarefa que tenho entre mãos. O melhor seria deixá-la cair. Talvez se quebre.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Um olhar dialéctico

Eis a natureza das coisas. Quais coisas, perguntar-se-á perante a proclamação. Aquelas que Wisłava Szymborska observava com os olhos com que escrevia. Por exemplo, ela via a realidade do futuro, do silêncio e do nada. Quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado. //Quando prenuncio a palavra Silêncio, destruo-o. // Quando pronuncio a palavra Nada, / crio algo que não cabe em nenhum não-ser. Imagino que ela tem um olhar dialéctico, pois em cada coisa observa a sua negação. Descubro uma fotografia dela, talvez pouco tempo antes de morrer aos 88 anos. Tornara-se com o passar dos anos uma mulher bela, mais do que era nas fotografias em que surge bem mais jovem, como se a beleza humana se tivesse deserotizado e ficasse reduzida à sua essência. Também neste facto há qualquer coisa de negação dialéctica, de superação, para falar à maneira de Hegel. A natureza do futuro é transformar-se em passado, a do silêncio é a de tornar-se som, palavra, a do nada é a de devir alguma coisa. Esta é a natureza das coisas, mas o facto de ser a sua natureza não elimina o mistério que há em cada uma. Aliás, qualquer natureza é já por si mesma um mistério. Os olhos de Wisłava viam aquilo que nós não vemos, não porque ela sofresse de alucinações, mas porque os olhos dos poetas têm uma acuidade que os outros não têm, estão preparados para tocar no fogo ardente do mistério que cintila na realidade.

domingo, 10 de março de 2024

Uma humilhação política

Um dos problemas mais agudos da crítica literária é o de saber se autor e narrador têm direito, ou não, a dois votos numa eleição. Imaginemos o caso deste blogue. Autor e narrador não pensam da mesma maneira, não agem da mesma maneira, nem sequer sentem da mesma maneira. Por que razão haveriam de votar na mesma maneira? Levemos a experiência mental mais longe. Ricardo Reis votaria da mesma maneira que Alberto Caeiro? Só por acidente. E Álvaro de Campos teria as mesmas inclinações políticas que Bernardo Soares? Talvez nem por acaso. E não deviam todos eles ter direito de voto, caso ainda estivessem no mundo dos vivos? E o voto de Fernando Pessoa deveria confundir-se com o dos heterónimos, semi-heterónimos e quase-heterónimos? Hoje passei uma humilhação, uma humilhação política, note-se. O autor apresentou-se, acompanhado da mulher, no local de voto e foi acolhido com sorrisos, ele, ao chegar a sua vez, entregou o cartão de cidadão, uma senhora diligente procurou o nome numa lista, declinou-o em voz alta, o senhor que vigiava a urna entregou-lhe o boletim de voto e ele lá foi para a cabine e voltou, depositando o boletim dobrado em quatro na urna. Quando me apresentei, a senhora, até aí simpática, afiançou-me, não sem severidade, que não constava na sua lista ninguém chamado narrador. Talvez esteja recenseado noutra freguesia, sugeriu. O solícito senhor da urna não me entregou o boletim de voto e não me restou outra alternativa senão vir para casa lamentar a feroz perseguição que os narradores sofrem neste mundo, onde são impedidos de votar por não gostarem do nome deles.

sábado, 9 de março de 2024

Dia do espelho

Então, hoje temos um novo dia do espelho, ouvi ao atender o telemóvel. Seguiu-se um riso escarninho. Dia do espelho, está a falar de quê? Já me habituei a esta idiossincrasia e como tenho direito de voto desde os anos noventa do século passado, altura em que me tornei um italiano português, acompanho com o máximo interesse o dia antes das eleições. O espelho, meu caro amigo, é o lugar onde nos reflectimos. Que tenha sido criado um dia, antes do acto eleitoral, para apurarmos o narcisismo é uma extraordinária, embora pecaminosa, invenção portuguesa, continuou, com possibilidades nefastas. Com possibilidades nefastas? O silêncio das caravanas e das arruadas parece-me uma causa nobre. Substitui-se a estridência pela reflexão, concluí. Uma gargalhada veio do outro lado. Não me faça rir, respondeu o padre Lodo. Olhar para o espelho, é isso que significa reflectir, tem um forte poder de contaminar a decisão com interesses egoístas, enquanto aquilo que se pede é uma decisão que tenha em conta o bem comum e não o interesse próprio. Não lhe conhecia essa propensão comunitarista, respondi. Talvez ande a ler o Charles Taylor e Michael Sandel. Já não tenho idade para essas leituras, disse, embora, como sabe, pertenço a uma companhia que não será particularmente liberal, existimos para defender o chefe de uma comunidade e não as manigâncias dos vendilhões do templo. A salvação, prosseguiu, e ao contrário do que se pensa, é uma obra colectiva. Salvamo-nos uns aos outros. Então, retornei, a perdição é obra da individualidade. Eu conheço, respondeu, a sua inclinação para a heresia, se não mesmo para o ateísmo, mas por certo já terá ouvido aquilo que escreveu Mateus, aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Ah, então é isso, o velho padre Lodo entrou numa deriva contra o liberalismo, imagino que queira voltar aos dias em que a Igreja não estava dividida, à Idade Média. Não, pois nessa altura a Companhia não existia. Nós somos filhos do Concílio de Trento, mesmo que isso, nos dias de hoje, não pareça. Parece, parece, retruquei. Deixemo-nos destes jogos florais, liguei-lhe para saber se no fim-de-semana da Páscoa estará por Lisboa. Não me parece, respondi, uma ideia digna do Concílio de Trento jantar fora na Sexta-feira de Paixão ou mesmo no Sábado de Aleluia. Deixemos Trento no seu lugar, ouvi.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Outro email

Caro narrador,

Não me respondeu. Será mais certo, espero, dizer ainda não me respondeu. Vi que não hesitou em publicar o meu email. Deparei-me com a sua publicação sem sobressalto. Admirei-me, porém, que me tivesse substituído o nome. O que escolheu serve-me perfeitamente. Era o nome de uma tia materna. Havia quem dissesse que eu era mais parecida com a tia do que com a mãe. Perguntei-me pelas razões que o terão levado a não ocultar o nome de Eduína. Imaginaria que ninguém associaria esse nome a uma pessoa real? Talvez esteja equivocada e projecte nos seus textos a figura de minha filha. O desejo inclina-nos a ver nas aparências realidades que não existem. O poema que citou a 15 de Fevereiro do ano passado deixou-me na dúvida. Nunca pensei que o discreto interesse de Eduína pela poesia passasse da leitura para a composição. Não posso dizer que essa passagem seja inverosímil. Desconheci-a. Uma mãe acaba por ignorar muito daquilo que os filhos são ou fazem. E desconhecem-no tanto mais quanto menos duvidam que os filhos lhes são transparentes. Cheguei a pensar que Eduína, na sua natureza diáfana, não tivesse segredos para mim. Iludi-me, claro. Haverá, nos cadernos, outros poemas? Existirão outros cadernos manuscritos na posse de outras pessoas. Nas coisas dela não encontrei nenhum. Talvez tudo isto não passe de uma confusão na cabeça envelhecida de uma mãe ainda inconformada com a perda da sua filha. Alguma, por mais tempo que passe, se conformará? Os dias estão frios e não sinto vontade de sair, pois ainda saio de casa sem a tutela de ninguém. Não sei por quanto tempo. Os dias estão frios, fico no calor da casa e penso no que me abandonou, penso na difícil equação de ter perdido o essencial e não ter morrido. A mecânica do mundo revolta-me. Ainda tenho folgo para essa revolta. Seria mais fácil Eduína lidar com a minha morte do que eu com a dela. Entre pais e filhos não há qualquer simetria. Um ar de família ou o amor não asseguram a reciprocidade. As mortes não têm todas o mesmo peso. Estou cansada.

Lívia

quinta-feira, 7 de março de 2024

Inferência à melhor explicação

Março, esse mês onde se dá uma transição entre estações, decidiu tornar manifesto que a sua grande vocação é ser mês de Inverno. Para isso, envia vento, frio e chuva. Imagino que também haverá neve nas terras altas. Pensamos que meses e semanas são meras divisões do tempo feitas pela arbitrariedade humana, mesmo quando elas têm suporte cosmológico. Esse pensamento choca com o que escrevi ao dizer que Março decidiu. Decisões tomam os seres que existem realmente, como os homens, talvez outros animais. É isso que pensamos, mas esse pensamento está ancorado na nossa ignorância. Criado um artifício – por exemplo, um calendário com meses –, este ganha existência e nessa existência inclui-se a vontade, o pensamento, até as memórias e as imaginações. Nada disto falta aos meses do ano. Se faltasse, como poderíamos explicar as suas mudanças de humor, as transições abruptas que acontecem, a máscara que tomam ao apresentarem um rosto primaveril em plena estação invernosa. A justificação de tudo isto só pode ser que um mês, qualquer um, é dotado desses dispositivos que equipam os seres que tomam decisões. Esta é uma inferência à melhor explicação, um raciocínio abdutivo, embora exista muita gente que confunde abdução com rapto por extraterrestres. Também é verdade que, se uma pessoa sai de casa, aqui nesta cidade perdia no Ribatejo, para comprar cigarros, não torna a aparecer e que, passados meses, é avistada na praia de Copacabana, a melhor explicação é ter sido abduzida por ET, ter sido analisada durante esses meses num laboratório existente num OVNI escondido dos olhares humanos, e que os visitantes do espaço, já não se lembrando onde tinham feito a abdução, deixaram o pobre homem em Copacabana, obrigando-o a passear de mão dada com uma mulher, para que ele não se perdesse na terra. Este é outro exemplo de uma inferência à melhor explicação ou raciocínio abdutivo, abdução, para resumir.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Um email

Caro narrador, 

Será assim que se deve começar um email, presumo. Hesitei no nome a dar-lhe, visto que parece não ter nenhum publicamente reconhecível. Pertenço a um tempo que não será o seu e tive de me adaptar a mais coisas que a indústria humana vem produzindo que o senhor. Entre outras, à navegação na internet. Digo-o porque creio ser mais velha, significativamente mais velha. Nasci no ano em que começou a guerra. Isto, imagino, não o interessará, pois não sabe quem sou, embora eu não tenha, neste momento, razões para dizer se me conhece ou não. Talvez sim, talvez não. Ao descobrir os seus textos, há umas semanas, e como o ócio e a memória são o que me resta, fui despreocupadamente lendo, recuando no tempo. Os blogues, pensei-o, são o contrário dos livros. Lêem-se do fim para o princípio. Esta minha viagem à rebours, perdoe-me o francesismo, o francês era dominante quando eu era criança e jovem, levou-me à descoberta de algo, estou convicta, que me diz respeito. A princípio pensei tratar-se de um acaso. Acasos e acidentes são coisas banais neste mundo, e, com a minha idade, já vi demasiados acasos e não poucos acidentes. Eu sei que estou a evitar o assunto. Se reparou, e por certo reparou, o assunto que referi, no local devido deste email, é inócuo e nada diz sobre o que me move. Antes de lhe escrever tentei aclarar em mim não apenas o que lhe queria dizer, mas também os meus motivos. O que lhe quero dizer, sei-o bem, mas os meus motivos ainda me são obscuros. A leitura de um certo nome que aparece, por vezes, nos seus posts, causou em mim um choque, que não foi pequeno. Também esse nome me fez viajar à rebours para o ano dois mil e um. Começa a desconfiar de quem falo. Não farei mais mistério. Foi nesse ano, como saberá, que Eduína, a minha filha, morreu. Ainda hoje não compreendo como a posso ter perdido. Ao ler esse nome tão querido, tremi, embora pensasse de imediato ser um acaso. Depois, as descrições que faz eliminaram-me qualquer dúvida. O senhor conheceu a minha filha, talvez mais do que eu possa imaginar, mas não sei quem é. Fiquei perplexa com a existência daquilo a que chama os cadernos de Eduína. Pensei em pedir-lhos, mas, por certo, pertencer-lhe-ão mais a si do que a mim. É provável que me tivesse conhecido. Terá vindo a nossa casa, quando era amigo de Eduína. Não tenho a certeza de conhecer todas as relações da minha filha. Ela tinha, mesmo para nós, um ar misterioso, enigmático. Se por acaso, frequentou a nossa casa, gostaria de o rever. Se não frequentou, teria prazer em conhecê-lo. Já não tenho com quem falar da minha filha. Era isto que lhe queria dizer.

Não sei que regra se usa numa despedida num email. Talvez nenhuma.

Lívia

terça-feira, 5 de março de 2024

Passagens

Hoje desforrei-me da inacção de ontem e acumulei 57 pontos cardio. A certa altura da caminhada, com o sol a incidir sobre os meus passos, pensei que tinha chegado a uma doce Primavera, daquelas que havia no Jardim do Éden e às quais sucedia um ameno Outono. Esta é a verdade climática do Paraíso. Doces Primaveras, sem calores excessivos, e amenos Outonos, sem frios rigorosos. Foi isto que desgostou Adão e Eva. Estavam desejosos de fazer turismo na época alta e protestaram perante Deus. Não era justo ali não haver calor para se ir para a praia ou para viajar pelo vasto mundo, para se ser turista e tirar fotografias aos monumentos e às ruas. Deus, na sua benévola misericórdia, sorriu com as pretensões pequeno-burguesas do casal original e começou a achá-lo menos original. Depois, um deles, não me lembro se Eva ou se Adão, contestou a nudez. Como poderiam eles, pois o contestador falou no plural, eu ouvi, deslumbrar-se com a roupa de alta-costura? O mundo das possibilidades estava-lhes vedado, acrescentou o outro. Deus, na sua misericordiosa benevolência, tornou a sorrir. Foi um largo sorriso no seu rosto infinito. Depois, foi aquela história da maçã, coisa que toda a gente sabe. Abriu-lhes as possibilidades, é verdade, mas trouxe todo o resto, incluindo o frio de regelar e o calor de ananases, para citar o Eça. A certa altura da vida, uma pessoa começa com uma história, mas, sem a terminar, logo passa para outra. Foi que me aconteceu hoje.

segunda-feira, 4 de março de 2024

O dia de hoje

Quantas coisas já fiz hoje? Começo a contar pelos dedos e concluo que fiz mais do que as recomendáveis para quem já tem descontos nos transportes públicos, nos museus e não sei mais onde. Contudo, não fiz uma que devia. Pôr-me a caminhar por essas ruas com a finalidade de chegar ao lugar de onde parti. O mais correcto será dizer que fiz a minha caminhada, saindo de onde estou e chegando a onde estou, mas que abreviei radicalmente o trajecto, eliminando o espaço entre a partida e a chegada. Começo mal a semana, com poucos passos andados e só dois pontos cardio conquistados, quando o objectivo mínimo é 20. Desconfio que amanhã vai suceder a mesma coisa. O melhor seria cortar nestes textos e pôr-me andar por aí. Irrelevâncias há tantas no mundo que estas são dispensáveis. Hoje, como narrador, acompanhei, contra vontade, o autor. Foi dar uma pequena palestra política, uma reflexão sobre as eleições. Levou-me, mas proibiu-me não de mencionar o facto, mas de narrar o que ele disse. Seja como for, o que ele disse, assevero-o, não enriqueceria em nada estes textos, apesar de serem de uma pobreza franciscana, da qual não sou responsável – é ele, claro, não fora ser o seu autor –, antes testemunha activa. Por vezes, tenho ideias brilhantes, mas ele recusa-as sempre, obrigando-me a narrar o que por aqui se vê. Tenho um delicado trabalho a fazer, mas não o comunico à cidade e ao mundo. Faço-o e remeto-me ao silêncio.

domingo, 3 de março de 2024

Um domingo na capital

Ao deixar o velho estádio do Restelo, pensei há décadas que não saio de um evento desportivo a um domingo pelas cinco da tarde. Já nem me lembrava daquelas procissões de debandada que se formam no fim dos jogos. Levei a família quase toda a ver o râguebi. Um Portugal – Espanha sempre é um Portugal – Espanha, assim como uma redundância sempre é uma redundância. O meu neto estava entusiasmado e acompanhava os gritos por Portugal. As netas estavam mais discretas. Fiquei espantado com o número de pessoas que foram ver o jogo. Havia muitas famílias trigeracionais no Restelo. É um programa de famílias e não de fanáticos. Desconfio que para muitos dos espectadores o jogo interessava pouco, mas a experiência de ali estar com filhos, pais, avós era o mais importante. Para ajudar estava uma bela tarde, a vista sobre o Tejo é magnífica e Portugal acabou por ganhar e qualificar-se para a final em Paris. Eis um domingo na capital digno de um domingo de província.

sábado, 2 de março de 2024

A sua verdade

Roger Scruton, num livro como Título O Rosto de Deus interroga-se sobre o significado dessa expressão que tomou para título. A certa altura refere S. Paulo e o seu agora vemos (Deus) por um espelho, mas então veremos face a face.  Neste mundo, os homens – e Moisés era um homem – estão impedidos de ver o semblante divino, talvez porque lhes seja insuportável. Contudo, esta ideia interessa-me de modo muito mais prosaico. Será que vemos realmente o rosto do outro homem ou também aos homens só os vemos num espelho? Os seres humanos espelham-se naquilo que fazem e espelham-se no rosto que nos deixam ver, mas este não será mais do que uma máscara, um produto do próprio homem para, inconscientemente, se velar. Pode ser insuportável para alguém tornar público o seu rosto e também poderá ser insuportável para alguém ver o rosto do outro. É possível que a vida não seja outra coisa que a demanda pelo seu próprio rosto, talvez irmanada com outra demanda, a do próprio nome. O homem procura não o rosto que vê e o nome que lhe deram, mas o rosto que não vê e o nome que não lhe deram. Aí, encontrará a sua verdade.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Mês de Marte

Devo ou não assinalar a efeméride, pergunto-me. Qual efeméride? A da entrada no mês que recebeu o nome do deus da guerra. Estamos, então, num mês marcial, o que parece estar de acordo com o espírito do tempo. Marte, e não estou a falar do planeta, tem o estranho poder de contaminar, de tal maneira, entrando em acção, todos os meses lhe são dedicados, até que ele, cansado de tanto pelejar, ruma para uma ilhar perdida e adormece. Ao sono do deus, chamam os homens paz. Acabei de comer umas nozes. Consegui evitar que o quebra-nozes destruísse a casca de uma delas. Posso, com o meu neto, transformá-la em dois navios. De preferência, veleiros. Depois, como estamos em Março, contar-lhe-ei que eram assim os navios dos Aqueus que partiram para Tróia, chefiados por Agamémnon, irados pelo rapto de Helena por Páris, e cercaram a cidade até a destruir. Agora, porém, tinha de ir auxiliar a neta mais velha. Parece em apuros.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Fevereiro e os anjos

Chegámos ao fim de Fevereiro num ápice. Talvez esta sensação seja fruto de o mês ser mais pequeno que todos os outros, mesmo na sua versão maximizada, a dos anos bissextos, como o actual. Não compreendo, e nisto serei acompanhado por muita gente, a razão por que Fevereiro aceitou sem grande contestação a exígua quantidade de dias que lhe foram atribuídos. Há, por parte dos autores do calendário, uma nula preocupação com uma distribuição equitativa dos dias pelos meses. Pergunto-me que concepções de igualdade haveria naqueles a quem Gregório XIII, imagino que cansado do calendário Juliano e desejoso de ter um com o seu nome, encomendou a repartição do ano por meses e dias. Hoje, no mínimo, deveria ser o penúltimo dia do mês e não o lamentável último. Quando se chega a certa idade, a um certo patamar da existência, o nosso espírito concentra-se nas coisas que são decisivas, como a dos dias de Fevereiro ou a do sexo dos anjos, um dos assuntos mais interessantes para discutir, pois consta que eles, os anjos, não o têm. Tê-lo-iam, estou certo disso, caso Fevereiro tivesse mais de 29 dias. A questão é fácil de explicar. Os anjos começaram por ter órgãos genitais, uns masculinos e outras femininos. Contudo, devido ao facto de serem, esses e essas anjos, de terrível beleza, o desejo do outro sexo angélico ocorria apenas nos dias 30 e 31 de Fevereiro, pois os outros dias do ano eles tinham de tomar conta de nós. O turbilhão dos amplexos era enorme e um grande desassossego ia pelas hierarquias angélicas. Chegado Março, o desejo cessava e ficava suspenso por um ano. Ora, a eliminação dos dias 30 e 31 de Fevereiro e quase do 29 teve como efeito a aniquilação dos amplexos sexuais angélicos. Com o passar dos anos, o desuso tornou os órgãos sexuais dos anjos inúteis e, estes, os órgãos sexuais, numa prova da evolução das espécies angélicas, acabaram por desaparecer. Quando se diz que os anjos são assexuados diz-se a verdade, mas nem sempre essa asserção foi verdadeira. Contudo e em relação ao tema dos anjos, não é a questão do sexo, aqui resolvida, que me atormenta. Maior e mais indecifrável é o mistério que atormentou, ou talvez não, os filósofos medievais, e me atormenta a mim, que sou um medieval perdido neste mudo contemporâneo, o mistério de saber quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete. Imagino que sejam legiões, mas há quem defenda que os anjos não dançam, o que torna risível o cálculo e me estraga o tormento.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O pastel de nata

Que posso dizer da mísera fraqueza que me habita? Nada. Sim, nada dizer é a melhor solução e conformar-me com o ser que me cabe. Tendo empreendido, não com muito denodo e entusiasmo, uma viagem numa dieta que me haverá de tirar meia dúzia de quilos que tenho a mais, ao que consta, hoje cedi à tentação de, antes de entrar num sítio onde se vende livros, comer um pastel de nata. Chegado a casa, fui verificar as orientações da nutricionista, e, infelizmente, não estavam lá mencionados os pastéis de nata dentro das coisas permissíveis. A minha primeira reacção ao ler o papel – sim, ela deu-me um papel com instruções, que eu faço o possível para não ler – foi de pensar que a senhora se terá esquecido. Depois, rememorei a consulta e não me lembro de em momento algum ela ter dito que pastéis de nata estavam autorizados. Uma coisa lamentável. Na próxima consulta, terei de lhe explicar que a sua estratégia para me tornar menos deselegante fere a minha identidade. Contar-lhe-ei, como narrador experimentado, que o pastel de nata era o único bolo que, na longínqua infância, eu admitia comer, embora a massa folhada que envolve a nata estivesse excluída, limitando a fazer figura de recipiente de onde, com uma colher de café, eu ia extraindo a nata, sob o olhar benevolente daqueles que me deram o ser. A senhora sempre há-de ter instintos maternais e compreenderá que a sua função não é destruir identidades. No próximo papel, lá virá o pastel de nata dentro das coisas permissíveis.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Silêncios

Alguém usa uma das paredes do prédio para se entregar à percussão, mas a batida é suave, embora com alguma rapidez. Talvez estejam a finalizar qualquer intervenção. Agora, os batimentos pararam e o silêncio é um lago de águas paradas que só o bater dos meus dedos nas teclas agita, desenhando círculos sonoros em expansão na superfície desse silêncio sem nome. Não será silêncio o nome do silêncio? Como é possível escrever silêncio sem nome? Não é muito difícil, respondo, bastará alinhar na sequência correcta as palavras silêncio, sem e nome. Eis uma graçola inútil, concedo. A palavra silêncio designa a ausência de ruído, pelo menos num dicionário de língua portuguesa de larga circulação. Seria melhor referir que o silêncio é a ausência de som perceptível pelo ouvido humano. Este silêncio, todavia, é bem diferente de um outro silêncio, mais fundamental, aquele que resultaria da completa ausência de vibrações sonoras por todo o universo ou por todos universos, caso haja mais do que um. O primeiro é um silêncio acidental; o segundo, essencial. Deveríamos ter dois nomes para designar estes dois silêncios. Teríamos então consciência de que aquilo a que damos inapropriadamente o nome de silêncio não passa de uma surdez circunstancial da espécie humana. Descobriríamos, depois e como corolário, de que não fazemos a mínima ideia do que será o silêncio essencial, o qual só será possível na pura imobilidade de tudo que existe, pois vibrar é já estar fora daquilo que é imóvel. Por isso, um certo evangelista que consta ter tido revelações na ilha de Patmos disse que no princípio era o verbo. Foi a vibração das cordas vocais divinas, presume-se, que, percutindo a matéria imóvel, a animou, a pôs em movimento e lhe insuflou a sonoridade por contágio. Foi assim que começou o mundo. Este é o meu começo do mundo. Se não gostar dele, eu tenho outros. Como se vê, este narrador é um groucho-marxista.