Li as primeiras páginas de Caruncho, o primeiro romance da espanhola Layla Martínez. É uma escrita poderosa e sem contemplações, onde o recurso à imaginação se combina com a crueza narrativa. Há nela um pacto entre a força da juventude e a maturidade nascida de uma vida tensa. Pouco sei da autora. Nasceu em 1987 e o romance foi publicado em 2021. Teria 34 anos, na altura. Não sei se aquilo que li é uma transformação literária de uma biografia ou o resultado de uma imaginação poderosa. Não quero saber. Gosto de conjecturar uma completa dissociação entre a vida do escritor e a obra que produz. O ideal seria que alguém criasse obras completamente desvinculadas da sua experiência de vida e da sua personalidade. O autor morreria ao escrever. Platão, através do inevitável Sócrates, dizia que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. O mesmo se pode pensar para a arte: vê-la como modalidade de morte do artista na produção da obra. Morrer, neste caso, significa apagar os traços biográficos do autor, torná-lo ausente da sua obra, deixar que esta, sendo sua produção, seja autónoma em relação ao produtor. A arte não é, assim, a expressão de uma subjectividade, mas um acto de estranhamento, a produção de uma alteridade radical, uma modalidade de alienação. Isto, porém, implicaria um domínio tal dos mecanismos da língua, no caso da literatura, e dos artifícios da poética – que apenas estariam ao alcance de um deus ou de um anjo. E, como sabemos, nem deuses nem anjos se interessam pelas práticas artísticas que inflamam o coração dos homens. De alguns, claro.
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