sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Imperfeição

Chegou a noite. Veio inclinada para terra, bojuda nas suas vestes negras, silenciosa na varanda do céu e, depois, cantante como um contágio de azul sobre as águas do mar. Podia falar de transfigurações nocturnas ou do ócio dos planetas que, num delíquio de gravidade, se fundem na sua estrela. Podia dizer os perigos que o tempo envia sobre a florescência íngreme da humanidade. Podia calar o vento que sopra do paraíso e nos empurra para o fim do tempo. A anáfora nunca deixa de trazer com ela uma cintilação estelar, mas o que resplandece, no fim de tudo, é a imperfeição do pretérito que, na verdade, nega as minhas possibilidades. Devia perder a candura de escrever textos destes, mas também o dever está maculado por essa imperfeição do pretérito, a mais terrível e a mais sublime. Num outro mundo possível, num daqueles em que os planetas não se fundem, como amantes tresloucados, nas suas estrelas, serei um gramático respeitável, que procura decifrar o mistério da imperfeição, seja ela pretérita, presente ou futura. Em todos os mundos possíveis onde existo, é ela, a imperfeição, o dom mais elevado que me foi doado.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Rock

O enorme romance – sempre são umas 770 páginas – do norueguês e putativo candidato a Nobel Karl Ove Knausgård, Os Lobos da Floresta da Eternidade, começa com o relato da audição de um álbum da banda de rock Status Quo. Conta que, aos doze anos, aquando do lançamento do disco, o ouviu sem parar, mas que, a partir daí, nunca mais o ouvira até ao dia em que começa a narrativa. Ouviu-o com um frémito de excitação. E mais uma vez pensei no meu desajustamento institucional com a minha geração. Nunca um disco de rock teve qualquer poder sobre mim. Ouvi alguns, claro, mas aquele mundo nunca foi o meu. Para dizer a verdade, nem sei se alguma vez soube que existia um grupo chamado Status Quo. Não se trata de uma preferência desde muito cedo pela música erudita. Não, esse gosto fui-o adquirindo mais tarde, numa descoberta progressiva e num exercício de auto-educação. Trata-se de outra coisa. Aquela música, a do rock, sempre a senti estranha à cultura de base onde nasci. A minha geração, talvez a primeira que, através dessa música, trocou a influência francesa pela norte-americana, a minha geração, dizia, banqueteou-se ali, recebeu daquele lugar uma orientação espiritual, digamos assim. Nunca compreendi. Devo ter perdido alguma coisa, mas agora é tarde, muito tarde para a procurar, quanto mais para a encontrar. E se a encontrasse, acho que não iria gostar do achado. A cada um os seus preconceitos.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Menoridade

Há dias comprei, numa pequena livraria ao lado de casa, dois livros. Há pouco, quis vê-los, mas não sabia onde estavam. O pior é que nem sequer fazia ideia de que livros eram. Tinham-se evaporado da memória, deixando apenas um leve traço do gesto de aquisição. Andei para um lado e para o outro e descobri um. Sim, aquele é um dos livros comprados. E o outro? Embora não saiba qual é, sei que esse outro é o que me interessa realmente, pois o que descobri só me interessa acidentalmente. Será um romance? Um livro de Filosofia? Não faço a menor ideia. Devia ser interditado de comprar livros. Aliás, devia ser interditado de muitas coisas e não me estou a referir a compras. Aqui, a velha costela iluminista, grita: onde está a tua autonomia, não sabes dirigir a tua vontade? Agora que estás velho, queres um tutor? Esqueceste que a Aufklärung é a saída do homem da menoridade de que ele próprio é culpado? Queres voltar à infância ou sentes falta da culpa? Encolhi os ombros e pensei qualquer coisa de não muito comunicável. Já não tenho idade para os dramas do século XVIII. Preocupa-me descobrir o livro que comprei – caso o tenha comprado – e que estou desejoso de ler, pelo menos enquanto não souber qual é.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Realidade

Voltou o sol. A manhã ainda se deixou ensombrecer por nuvens retardadas na sua jornada, mas a tarde resplandece sob o comando uma luz solar vibrante. Nada que contenha o chora de uma criança no parque lá em baixo. Não se comove com as metamorfoses atmosféricas e o clima não é, por agora, uma das suas preocupações. Apenas  o desejo insatisfeito a atormenta, rasga-lhe a alma, nesse momento em que aprende a sua finitude, sem dela ter consciência. Terá sido assim que todos aprendemos a nossa, chocando com o império do não perante o ímpeto do nosso querer. A aceitação da realidade é sempre um processo doloroso, mesmo numa tarde soalheira, mesmo sob a bênção  de uma luz  benévola. Saber-se finito quando o desejo é infinito, eis a mais terrível das dores.

domingo, 16 de novembro de 2025

Do egoísmo da bondade

No Livro dos Provérbios e das Reflexões, Arthur Schnitzler tem um pequeno conjunto de dísticos, a que deu o nome de dísticos ateus. O quinto diz: Humedece-vos os olhos, a compaixão… mas receio bem que a segunda lágrima / Já a verteste, com extrema comoção, pela vossa própria bondade. Esta desconfiança perante a bondade dos homens é um lugar-comum muito antigo. Isso levou Kant a declarar que as acções bondosas feitas por uma inclinação natural para o bem são destituídas de valor moral. A pessoa não cumpre o dever de fazer o bem por amor ao dever, mas por, digamos assim, um prazer egoísta de satisfazer a sua natureza. De outro modo, de um modo poético, é o que diz o escritor austríaco. O mundo não seria um lugar pior do que é, pelo contrário, se todo o egoísmo humano se revelasse num prazer de alguém se sentir comovido com a sua própria bondade. Mesmo que o acto bondoso tivesse, no agente, uma raiz patológica, ele seria, para o paciente da acção, uma bênção. E para o agente talvez o seu destino não fosse o inferno, pois um egoísmo fundado no bem dos outros não apenas é melhor do que um egoísmo ancorado no mal de terceiros, como há nele um passo, talvez pequeno, para fora desse mesmo egoísmo.

sábado, 15 de novembro de 2025

Transitoriedade

Passámos o meio de Novembro e o tempo, novembroso como está, não desmerece da época. O crepúsculo é ferido pelo anúncio de néon de uma cadeia de hambúrgueres. Quanto tempo demorará o bosque da escola aqui ao lado a ocultar aquele símbolo de um mundo que importámos daquele lugar que foi abençoado com uma dose não pequena de mau-gosto. Nada contra os hambúrgueres, quem os come ou vende. Apenas a invasão contínua do espaço público pela poluição estética é o alvo de um desabafo, que, aliás, é feito sem convicção, pois tenho pouca convicção em armazém e há que guardá-la para algo mais decisivo. Ora, são poucas as coisas decisivas ao cimo deste planeta, ou talvez seja mais verdadeiro dizer que nada há de decisivo. Nele, tudo é transitório.  E o que é transitório não pode ser decisivo. Se as pessoas pensassem assim, o mundo iria, por certo, melhor. Contudo, fazem precisamente o contrário, em tudo vêem coisas decisivas e afundam-se nesse abismo de ignorância, como o dia, agora que as janelas do crepúsculo se fecham, se afunda na noite. Sim, anoitece muito cedo.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Ferida narcísica horoscópica

Agora que a realidade se tornou menos real, dedico-me, por vezes, a coisa nenhuma. É uma dedicação em que se corre riscos mais perigosos do que se pensa. Não ter inclinação conflituosa, nem propensão para causar o mal, o sentimento de uma certa bondade para com os seres, tudo isso fazia parte da imagem que construí de mim mesmo. Há umas semanas, mas já não sei quantas, decidi pedir um horóscopo da minha pessoa a um desses modelos de linguagem de inteligência artificial. Não porque haja em mim fé nos astros e nas suas conjugações, mas porque a realidade, ao tornar-se difusa, me faz ter pensamentos pouco dignos. E foi nesse lance infeliz que descobri que tudo aquilo que pensava sobre uma suposta bondade, pouca inclinação ao conflito, etc., etc., não era nada que se fundasse num mérito pessoal, mas no simples caso de ter Marte em Peixes. Parece que Peixes é um péssimo sítio para Marte, pois dissolve a marcialidade do planeta. Uma ferida narcísica que me atingiu na virtude. Pior, fez-me pensar que seria virtuoso se armasse conflitos por tudo e por nada, pois isso exigiria de mim a superação dessa penosa situação de Marte na hora em que nasci. Fiquei a considerar o assunto, a pensar com quem poderia armar conflitos, mas o esforço que isso me exigia seria tanto que decidi abdicar de ser virtuoso. Se nasci com Marte em Peixes, é assim que tenho de viver. Com isso e com não sei quantos planetas e o ascendente (haverá um descendente?), mas não o Sol, em Escorpião. O mais enigmático, porém, é que nunca fui pacifista, considero o exército coisa séria e indispensável, pois nunca sabemos quando outras potências têm Marte em Carneiro ou em Escorpião, o que parece ser terrível. Apesar de tudo, ainda tive sorte. Com tantos astros em Escorpião, Marte decidiu ficar-se por Peixes.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Neste ínterim

A tempestade acordou-me pelas seis da manhã. Não, não foi a tempestade, mas fui eu que acordei e ouvi um trovejar dos antigos, daqueles que só existiam no princípio do mundo. A trovoada manteve-se – ora mais longe, ora mais perto – até depois da nove. Não lhe faltou persistência, substituindo pelo rufar do bombo celeste o clarim que devia acordar o soldado para mais um dia de campanha. Não faltou chuva. Numa aberta, fui ao café aqui ao lado – onde há uns bolos de perder a cabeça –, de lá, depois de ter cedido à tentação, dei um salto até à farmácia. Aí não havia nada que fizesse perder a cabeça, mas talvez houvesse alguma coisa para quem anda de cabeça perdida, mas, como não é o meu caso, não indaguei. Da farmácia, outro salto até à frutaria, e desta outro para casa. Tudo resolvido em menos mil passos, que a vigilância electrónica a que me submeto através de uma aplicação do telemóvel bem os contou. Não choveu nesse ínterim, ao contrário do que acontece agora. Enquanto limpo as lentes dos óculos, contemplo a rua pela janela. Os elementos estão à solta, mas eu estou recolhido para pensar em palavras como ínterim, que se usam tão pouco, vítima de uma exclusão tempestuosa originada em  alguma alteração atmosférica ou no pouco prazer que os portugueses sentem pela língua que – sem o merecerem – receberam como um presente de Natal. Um daqueles que se olha com curiosidade, se guarda num lugar esconso, onde fica esquecido para o resto da vida. Oiço um trovão, mas é ao longe, muito ao longe.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

À espera de Godot

Tenho uma tendência não desprezível para a iteração. Volto uma e outra vez aos mesmos assuntos, preso por um fascínio difícil de explicar. Um dos meus preferidos é a crença – a estranha crença – de que um dos elementos do Juramento de Hipócrates, a base mítica da deontologia médica, é a prescrição de que um médico nunca deve cumprir a hora agendada para a consulta. Esta ideia foi-se tornando em mim uma certeza devido à constatação da diferença abissal entre aqueles que não cumprem e os que cumprem, excepções raras e preciosas, mas que não devem estar dispostos a ler o Juramento de Hipócrates. Eu também não li, mas não sou médico. A maioria dos médicos deve tê-lo lido e, confrontada com a prescrição – ou será um imperativo categórico? – de deixar o paciente na dúvida sobre se o médico existe ou se a sua estadia ali é fruto de uma alucinação, obriga-se a cumprir religiosamente a máxima de atender o paciente no momento em que este desespera por pensar que talvez o médico – ou a médica – seja o verdadeiro Godot, embora nunca tenha imaginado um Godot feminino. Talvez o objectivo do médico seja salvar o paciente, se não da doença que o aflige, pelo menos do desespero de pensar que está a sofrer de alucinações. Não falo por falar. Um acaso – infeliz, por certo – determinou que tivesse duas consultas com médicos diferentes, e em sistemas de saúde diferentes, em dois dias consecutivos: ontem e hoje. Nos dois casos, por outro infeliz acaso, esperei uma hora e um quarto, setenta e cinco minutos para ser atendido, isto é, para descobrir que aqueles médicos existiam mesmo, que não havia nenhum Godot, com calças ou com saias, e que eu não estava louco. Em ambos os casos, entrei desesperado e saí agradecido.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

S. Martinho

As castanhas, a água-pé e um Verão tardio que se esqueceu de marcar presença. É a pequena mitologia que cabe a um S. Martinho que, não muito longe daqui, tem uma feira com o seu nome, mas da qual, desconfio, se afastaria a passo rápido. É um mistério — ou talvez não — este costume de associarem nomes de santos a eventos profanos, nos quais não se vislumbra uma sombra da razão que um dia ligou aquele acontecimento a tal santo. Contrariamente ao Verão efectivo, o de S. Martinho dá-me prazer, e sinto a sua ausência como uma ofensa pessoal. Exagero. Deve-se a uma certa inclinação que há em mim para a hipérbole. Passando ao lado da inflação da ofensa, o que posso dizer é que uns dias de Sol, com Novembro já próximo do meio, funcionam como uma espécie de vitamina que ajuda o corpo a resistir aos dias sombrios que se aproximam. Tenho a tarde para ler Cesário Verde e os heterónimos de Pessoa. Um pedido de ajuda da neta mais velha. Tenho de imaginar como a posso ajudar, pois, entre o que para mim significa a poesia e aquilo que a escola determina que ela é, haverá um abismo intransponível. Talvez comece por lhe explicar que todo o poeta é um fingidor, mas nem todos fingem tão completamente, pois falta-lhes a dor — precisamente aquela que deveriam fingir, mas que não têm. Presumo que este não será o melhor caminho de ajuda.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Um olhar vespertino

Os dias alinham-se agora sob uma atmosfera húmida, esperando sem impaciência a chegada do Advento. Em certos corações, descobre-se uma exigência de silêncio, um desejo apaziguado de contemplar o mundo, de desocultar o que habita sob o império do ruído. Olho pela janela do escritório. Ao longe, o hospital oferece-se ao olhar numa brancura imaculada, depois de anos e anos ensombrecido por camadas de fungos, derrotadas, por momentos, pelos trabalhos de pintura. O vento que há pouco inclinava as folhas das árvores aquietou-se, e os liquidâmbares refulgem no acobreado das folhas, de onde se evola um cântico, na hora que antecede a queda. O Outono triunfou, mas na tez das suas manhãs demora-se já a anunciação do Inverno.

sábado, 25 de outubro de 2025

Desejar, não pensar

Em dias sombrios como o de hoje, penso nas verdades eternas. Não nelas mesmas, mas numa suspeita que há em mim. Essa suspeita diz: como podes tu, ser efémero, finito e limitado, pensar naquilo que é eterno. Uma verdade eterna seria qualquer coisa que se manteria verdadeira por toda a eternidade. O problema está na expressão qualquer coisa. Qualquer coisa significa aqui uma proposição, uma afirmação. Tudo isto supõe que, em primeiro lugar, que o pensamento humano, na sua finitude, consegue captar aquilo que é eterno e, depois, que a linguagem o consiga expressar com uma exactidão tal que assim se manteria por toda a eternidade. Uma fantasia. O melhor que consigo arranjar, num dia como o de hoje, é uma ideia mais plausível: a consciência que temos da nossa mortalidade abre em nós um desejo de continuidade. E como todo o desejo, o de persistir é infinito. Daí a ideia de eternidade. Isto não significa que não existam coisas eternas e, entre elas, verdades eternas. Significa apenas que para nós, na melhor das hipóteses, se apresentam sob a forma de uma objecto do nosso desejo. Este é o sinalizador de algo que está fora da nossa experiência possível. Não pensamos no eterno. Desejamo-lo. Mesmo quando julgamos estar a pensar na eternidade ou em verdades eternas, apenas estamos na esfera obscura do desejo, da pulsão, na cabana de eros e não no palácio do logos. Agora, porém, vou ver se chove. A vida é feita de coisas prosaicas.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Emmanuel e Immanuel

Terá nascido em 1688 e morrido em 1772 e foi, durante parte substancial da sua vida adulta, um respeitável cientista. Emmanuel Swedenborg, um sueco, interessou-se por matemática, geologia, anatomia, fisiologia, astronomia. Esta amplitude de interesses não era rara naqueles dias. Por volta dos 56 anos, porém, teve uma série de sonhos, visões, experiências místicas. Estas aventuras culminaram com uma visão de Jesus Cristo, que, segundo Swedenborg, o terá instruído a escrever sobre assuntos espirituais. A partir de então, substituiu as múltiplas ciências pela sua muito particular teologia. Argumentou que se lhe tinham aberto os sentidos espirituais, o que lhe permitia comunicar com anjos, espíritos e visitar o mundo espiritual. A sua teoria mais conhecida é a doutrina das correspondências. Defende que o mundo físico é um reflexo do mundo espiritual, cada objecto material corresponde a uma verdade espiritual, o que não difere muito do platonismo. Um outro Emanuel – precisamente, Immanuel – agora alemão, e de apelido Kant, chegou a interessar-se pelo homónimo sueco. Contudo ao ler a obra principal, Arcana Coelestia ficou em estado de choque. Em 1766, escreveu Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik, o que significa em português: Sonhos de um Vidente, Esclarecidos por Sonhos da Metafísica. Kant nunca achou que Swedenborg fosse um charlatão, mas uma mente sonhadora fruto de uma doença mental ou de uma imaginação sem controlo. O problema das crenças do sueco residia, segundo o alemão, em que o primeiro ultrapassava os inflexíveis limites da experiência possível. Talvez seja neste momento que Kant descobre o caminho para se tornar o Kant que conhecemos. Não acreditava em sentidos espirituais, mas apenas naqueles que nos dão informação sobre o mundo, os prosaico cinco sentidos. O conhecimento do mundo espiritual, segundo o filósofo alemão, está-nos interdito. A metafísica, enquanto ciência, é uma impossibilidade. Ora, até aos 56 anos, Swedenborg não parece ter tido grande interesse por esse mundo metafísicos. O enigma, porém, não reside no sueco, mas no alemão. O que seria Kant se, aos 56 anos, tivesse o conjunto de experiências que teve Swedenborg? Tornar-se-ia um vidente sonhador ou procuraria um médico para se tratar?

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Outonados

Apesar de ameaçar chuva, o calor resiste e não se dobra a um Outono que consumou já o primeiro terço do seu percurso. Ontem, em conversa com um amigo reforçámos a consciência daquilo que é uma certeza. Este já não é o nosso tempo. Não nos estávamos a referir ao clima, ao desconcerto – ou ao desconserto – das estações, mas à época em que vivemos. O nosso tempo passou e não mais voltará. Isto, porém, será sentido por todos aqueles que chegam à idade a que já chegámos. É evidente – presunção e água benta cada um toma a que quer – que concordámos que, no mundo, se move qualquer coisa de tenebrosa que se prepara para enterrar os nossos luminosos dias, que na verdade, concordámos, também nisso, nunca foram muito luminosos. Estamos outonados, não tarda invernosos, e nem dos dias primaveris nos haveremos de recordar. Contamos os amigos mortos. São assim os dias de Outono.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Despovoamento

Numa entrevista, de 1999, dada à revista Arte Ibérica, citada pelo Público, João Queiroz dizia: Há gestos que tinham que ser e outros que podiam não ser… Por isso estou atento a como o meu corpo aprende os gestos. Agora, o pintor deixou de atentar ao modo como o seu corpo aprende os gestos. Morreu hoje, aos 68 anos. Deixa uma das obras fundamentais da pintura portuguesa da transição do século XX para o XXI. Fomos colegas de curso, depois ele abandonou os conceitos e escolheu a pintura. Trocou a lógica pelo gesto, mas, basta ver as suas obras, nunca abandonou a metafísica, uma forma muito própria de se relacionar com ela. É assim que o mundo se despovoa.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Avós

Lembrei-me das minhas avós, como elas eram no tempo em que descobri que existiam avós. Não foi, na verdade, uma descoberta. Elas estavam lá, quando nasci, no lugar que era o delas, com as suas especificidades, as suas diferenças, os seus olhares sobre o mundo. Lembrei-me delas ao ler um poema do poeta polaco Zbignew Herbert, com o título Avó. Herbert escreve sobre o que ela lhe contava e, fundamentalmente, o que lhe ocultou, o massacre dos arménios pelos turcos, para o poupar na sua infância, para lhe conceder vários anos de ilusão, sabendo que ele um dia o descobriria. Pergunto-me o que me terão ocultado as minhas avós, na esperança de que eu o haveria de descobrir. Talvez não existisse nada a ocultar. Ou talvez houvesse, mas o meu talento para a descoberta fosse e seja diminuto.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Falar, falar, falar

Nas suas reflexões sobre a obra de arte, o escrito austríaco Arthur Schnitzler, escreve, no aforismo 78, de “Obra e Repercussão” (in Livros dos Provérbios e das Reflexões): A primeira pergunta do crítico deveria ser: Tu, obra, o que tens para me dizer? Mas, regra geral, isso pouco lhe importa. O seu primeiro impulso é antes: Agora, obra, presta atenção ao que tenho para te dizer! Uma experiência quotidiana mostra que esta atitude do crítico de arte se enraíza numa inclinação mais geral que há nos seres humanos. Raramente numa conversa, os interlocutores se prestam a escutar o que os outros têm para dizer. Seguem a divisa: Presta atenção ao que tenho para dizer. Se supusermos um observador não humano, mas dotado de razão, facilmente podemos imaginar a sua perplexidade perante a utilidade da conversação entre os seres da nossa espécie. Se esse ser for suficientemente perspicaz, porém, descobrirá que esses monólogos conjuntos dão um prazer aos interlocutores. Não o da intercomunicação e da partilha, mas o de cada um se ouvir a si mesmo, perante testemunhas. O testemunho dos outros é a prova de que falei para mim mesmo, claro, mas que consegui articular palavras e frases. Uma conversa em grupo é fecunda, não pela partilha de ideias, mas pela expansão do universo de testemunhas que podem provar, caso um tribunal as convoque, que cada eu fui capaz de falar comigo mesmo. A dura disciplina da escuta, se alguma vez foi praticada pela humanidade, há muito caiu em desuso, afectada pela má imprensa e por uma pedagogia social fundada no inexorável direito à palavra.

domingo, 19 de outubro de 2025

Destinos

É bem anterior aos gregos a ideia de que o destino dos heróis é decidido em concílio dos deuses. A grandeza de um herói não está na sua capacidade de moldar um destino, de dobrar o mundo às suas decisões, mas em cumprir e suportar um destino – por norma, adverso – que lhe é imposto. Isto para nós, homens modernos, é estranho, pois concebemos a grandeza fundada no livre-arbítrio e no poder de realizar aquilo que decidimos. Talvez por isso, um herói moderno, como D. Quixote, seja, na verdade, ridículo, ou destituído de qualidades, como Ulrich, do romance de Musil. A grandeza humana é, para o homem pré-moderno, não humana. O que os homens são, não são ou deixam de ser é-lhes dado pela decisão dos deuses. Resta saber, todavia, se essa decisão é livre ou fruto de um acaso que acaba por determinar os humores dos deuses quando se sentam para deliberar destinos humanos e, por certo, entregarem-se à bebida.

sábado, 18 de outubro de 2025

Manhã de sábado

Hoje não fui caminhar de manhã. Dormi mais do que é hábito. Quando a manhã já se inclinava para o meio-dia, saí, sentei-me na esplanada do café aqui ao lado e fiquei a saborear a frescura que ainda se fazia sentir. As acácias deixam amarelecer as primeiras folhas, mas ainda são um mar de verdura a caminho do céu. Havia gente em trânsito, mas ninguém com pressa. Pais com filhos pequenos, casais reconciliados, um ou outro solitário. Numa mesa ou noutra, havia quem lesse o jornal, mas agora esses leitores são raros. As pessoas preferem os telemóveis. Entram neles e perdem-se num labirinto, sem que um fio de Ariadne os conduza para a liberdade. Ali ficam à espera de que o Minotauro as encontre e devore. Os tributos são para pagar. Depois, levantei-me e dei um pequeno passeio pelas redondezas, e em todo o lado o espírito do dia era o mesmo. As manhãs de sábado, na província, são assim. Ou talvez de outra maneira, sei lá como elas são naqueles lugares onde não me encontro. Tenho de domesticar a tendência para a generalização, embora saiba que quanto mais particular é a experiência, mais universal é.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Autenticidade

O hábito inclina-nos a pensar a autenticidade como sinónimo de sinceridade ou de veracidade. Contudo, essa qualidade está ligada, em primeira instância, à de autoridade. Não de uma autoridade proveniente de um desígnio legal, mas da autoridade de quem é autor. Assim, a autenticidade é a qualidade – ou a virtude – daquele que realiza alguma coisa, que a faz vir à existência. Quando tomamos a autenticidade no sentido de veracidade já estamos a perder um elemento essencial. O verdadeiro resulta do acordo entre um pensamento e a realidade que ele pensa. Por seu turno, a sinceridade é acordo entre aquilo que um sujeito expressa e aquilo que sente ou pensa. Em ambos os casos, perdemos a dimensão de realização e, com ela, a de autoria. A pessoa que ostenta a virtude da autenticidade é virtuosa não porque pensa verdadeiramente ou se expressa com sinceridade, mas porque faz acontecer algo no mundo. A autenticidade – para usar o jargão filosófico – pertence ao domínio da ontologia e não da epistemologia ou da ética.