terça-feira, 28 de junho de 2022

Precipitações no juízo

Por certo, devido ao livre-arbítrio, precipito-me muitas vezes nos juízos que faço e promovo como verdadeiras crenças, que uma análise mais atenta revelará, ao menos dotado dos observadores, a sua falsidade. Imagino, embora seja uma presunção da minha parte, que haverá observadores ainda menos dotados do que eu. Entrei numa livraria. Bem, esta afirmação é falsa. Entrei numa superfície comercial que também vende livros. Dirigi-me às estantes onde está a literatura de ficção, em geral romances e contos, e deixei correr os olhos pelas lombadas dos livros. Passei por de Javier Marías para Amin Malouf e, antes de chegar a José Luís Mendonça, deparo, com grande surpresa minha, com o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. Mas isto não é literatura, mas política, quanto muito filosofia política, disse de mim para mim. Devido ao meu livre-arbítrio, conjecturei de imediato que a pessoa que tem a função de arrumar os livros nas prateleiras não faz a mínima ideia dos géneros pelos quais os livros se podem dividir e arrumar. Em abono dessa pessoa desconhecida, tive também um pensamento benévolo. Pelo menos sabe que Marx vem antes de Mendonça e depois de Malouf, o que já não será mau. No entanto, aquela ideia de que a pessoa arrumadora não sabia distinguir os géneros poderá ter sido um juízo precipitado e falso. Ela pode ter pegado no livro, feito uma leitura rápida e achou que tudo o que lá se encontrava era pura ficção. Afinal, penso agora, as pessoas que arrumam livros não estão tão mal preparadas quanto pensei de início. Um leitor atento de Borges teria percebido de imediato o que estava em jogo. Há muito, porém, que não leio Borges e perdi o treino. Não se pense que há, no que escrevo, algum acinte para com a dupla Marx e Engels. Acontece com o que escreveram aquilo que acontece com todos os que escrevem sobre ideias. Políticas, morais, metafísicas, estéticas, religiosas, científicas. As suas obras chegam ao mundo com a pretensão de dizerem a verdade e, com o passar dos anos, transformam-se em literatura, pura ficção, romances, novelas, contos, disfarçados de ensaios, tratados, artigos especializados, sei lá. Veja-se o exemplo dos diálogos platónicos. Literatura e da melhor; o que se pode dizer de Platão, pode afirmar-se de Aristóteles e de todos os que se entregaram à ensaística. O destino de qualquer livro é tornar-se ficção, mesmo os mais ferozmente científicos. Foi isto que aprendi com a sábia decisão de quem arrumou Marx e Engels e o seu popular Manifesto entre a literatura de ficção. Terei de me precaver para evitar, no futuro, a precipitação ao formular juízos. 

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