terça-feira, 14 de junho de 2022

O princípio de farsa

Quando as coisas são vistas de fora, tudo o que parece decisivo mostra-se como risível, objecto possível de um sorriso malicioso ou de uma boa gargalhada, mesmo se ingénua. Se há coisa que acalora ainda hoje apoiantes e adversários – por motivos contrários, claro – é o 25 de Abril de 74. Sobre a data fazem-se juras de amor eterno ou proclama-se um rancor que nem no inferno será apaziguado. Contudo, a leitura da meia-dúzia de páginas que Alexander Kluge dedica ao acontecimento, no volume II da sua Crónica dos Sentimentos, acaba por tornar todo este excesso de sentimentalidade não apenas anacrónico como ridículo. Não terá sido por acaso que essas considerações são feitas no volume com o título A Queda para Fora da Realidade. Nisto não há uma crítica – favorável ou desfavorável – ao acontecimento português, mas ao entusiasmo que, na época, os jovens estudantes alemães – ainda grávidos das ideias de 68 – dedicaram ao assunto, onde viram a possibilidade de conjugar a revolução e o romantismo, antes de se fazerem à vida. Um desses jovens – a vítima do texto de Kluge – escreve: Durante muito tempo [Portugal] fica imune aos conflitos do resto do mundo. Explora os recursos das suas colónias com uma crueldade indolente, mediana. Contudo, é o próprio Kluge que afirma: Depois, a revolução de 1974 empurra Portugal para a realidade do século XX. A princípio com traços de conto de fadas: um Presidente de monóculo, claramente vindo de outro tempo, une o Norte e o Sul do país, sociedades inconciliáveis. Um conto de fadas com um Presidente de monóculo. Como, perante esta leitura cruel, os sentimentos ainda poderão encontrar combustível para se incendiar? Não se pense, porém, que o caso português é excepcional. Não, todos os grandes, e os pequenos, acontecimentos são habitados, de forma mais clara ou mais obscura, por um princípio de farsa. Por trágicos e grandiosos que eles sejam, contêm sempre uma farsa. Isto dever-se-á ao facto de todos nós, seres humanos, sermos, na realidade, uns farsantes. E é essa qualidade que transportamos para tudo o que fazemos. Um dos talentos de Kluge – que não será menos atreito à farsa – é, em poucas palavras, mostrar a farsa onde os outros vêem coisas que lhes incendeiam as paixões. E aqui temos uma revelação: o conúbio entre a paixão e a farsa. Sobre este casamento, todavia, resguardo a minha opinião. Por hoje.

1 comentário:

  1. Farsas & Farças. Como a dos ilusionistas, Barroso ou Portas, Sócrates ou agora Costa. Entre o real e o imaginário, uma valente Farsa Lusitana. Com farsantes qb.

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