quarta-feira, 15 de junho de 2022

Um imenso borbulhar

Um concerto de corta-relva. O solista esforça-se, mas a orquestra não o ajuda. Talvez o compositor não tenha tido em consideração a potência sonora do instrumento mecânico e a sua possível incompatibilidade com os diversos naipes instrumentais. Por isso, o cortador de relva parece perdido no próprio relvado que tem para cortar. Quando, por instantes, suspende a actividade, consegue-se ouvir os carros, o vento e até um coro de adolescentes. Talvez tudo isto não passe de um ensaio. Tenho particular pouca sorte. Este tipo de espectáculo acontece sempre que estou em casa. Também podia fechar as janelas, é verdade. Ia escrever que a mente humana é muito volúvel, mas corrijo. A minha mente é muito volúvel, a dos outros não faço ideia. Iria cometer uma generalização precipitada e, porventura, injusta. Mesmo agora a volubilidade da minha me deu uma prova irrefutável, mais uma. Não sei porquê, mas passou de um argumento sobre a existência de Deus da autoria de Anselmo de Cantuária para as 24 Horas de Le Mans, do ano de 1972. Por mais que procure em mim, não encontro razão para qualquer um destes pensamentos me ter vindo, nem um motivo para saltar de um para o outro. Não têm ligação entre si. Poderia explorar este estranho encontro para dizer que a mente é um lugar onde borbulham pensamentos sem que para esse borbulhar haja razões. Serão de geração espontânea. Eu sei que haverá logo quem afirme que pelo facto de eu não saber a razão desses pensamentos não significa que ela não exista. Concedo que poderá ser assim, mas, com a temperatura que está, hoje adopto a teoria da geração espontânea. A ideia de que o que acontece tem causa e que está determinado é uma ilusão fundada na necessidade humana de encontrar explicações para acalmar os medos que o incausado provoca. A realidade, tal como este texto, não passa de um imenso borbulhar sem causa nem sentido, o conjunto de irrupções súbitas sem que nada as provoque ou produza. Julgo que com este calor, nem o santo de Cantuária me vale. Cada vez tenho piores ideias, mas são as que me ocorrem, isto é, as que borbulham ao acaso na minha mente, se é que tenho uma.

2 comentários:

  1. Como o compreendo! Os meus vizinhos também têm uma certa tendência para o cortador da relva (e das sebes). Ainda não aprenderam que a jardinagem se deve fazer com atenção aos e respeito pelos sons da natureza.

    Quanto ao seu texto, talvez se engane porque pode estar tão absolutamente determinado quanto César o estava ao cruzar o Rubicão. É o princípio da razão suficiente: tudo tem de ter a sua razão. Assim, o sujeito exprime a totalidade do mundo e o passar o Rubicão desenrola-se numa regressão infinita de causas até à origem. Pois é, no mundo em que toda a proposição verdadeira for analítica, ter escrito o texto que comento é uma propriedade inerente ao meu amigo, tal como passar o Rubicão é inerente a César, o pecado a Adão, e este fútil comentário a mim. Espero que isto não seja verdade, porque se o for estamos condenados a gramar os cortadores de relva enquanto isso for uma propriedade intrínseca aos nossos malditos vizinhos.

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    1. Neste caso, os meus vizinhos estão inocentes. Não têm sequer relva para cortar. A relva é pública e o solista, por certo, pertencerá a uma empresa privada. Aliás esta empresa tem bizarros procedimentos. Por vezes, e não poucas, acha que a melhor altura para o concerto é aos sábados pelas oito da manhã. Talvez esse seja o melhor dos mundos possíveis, embora não me pareça.

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