quinta-feira, 9 de junho de 2022

Olhar de esguelha

Gostaria de falar sobre o mundo, mas ainda não saí de casa e tenho as persianas corridas para que as ondas de calor batam nelas e recuem, perdendo-se sabe lá Deus onde. O mundo que me coube até ao momento, neste dia, chegou em forma de videoconferência e o que se acerca desse modo não é um mundo, mas um simulacro, o exercício de potências inferiores que conspiram, em plataformas virtuais, para nos enganar. Um leitor ocasional deste escrito pode perguntar-se pelo estatuto de verdade das afirmações feitas mais acima. Serão verdadeiras ou serão falsas? A questão, todavia, será irrelevante. Que diferença fará o facto de eu ter, no dia de hoje, saído e as persianas estarem levantadas? Aceitamos sem questionar que a verdade será a adequação do que é dito com a realidade. Contudo, não me parece possível estabelecer qualquer adequação entre um conjunto de palavras e factos físicos. A distância entre representante e representado é desmedida. Há um verso de Herberto Helder que talvez diga o essencial: A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação. As palavras seriam essa fantasia minuciosa, uma inovação oblíqua. Por isso, não devemos crer que elas tenham o poder de dizer a verdade, pois estão constantemente perdidas em fantasias, com olhares oblíquos. As palavras olham de esguelha. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, as videoconferências não contribuem para a sanidade mental de ninguém. Vá lá, contudo, as coisas poderiam ser piores. Em vez de ter citado um poeta reconhecido e um verso existente, bem poderia ter mobilizado como autoridade um poeta inexistente e um verso apócrifo, tão apócrifo quanto este narrador perdido na narrativa.

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